O enviado dos novos tempos

José Maria Seleiro, vencedor do concurso Big Brother, da TVI, abandona a casa onde viveu durante 120 dias, em Venda do Pinheiro.

Legenda: José Maria Seleiro, vencedor do concurso Big Brother, da TVI, abandona a casa onde viveu durante 120 dias, em Venda do Pinheiro.Eu sou o enviado dos novos tempos. Aquele que vem em nome do grande irmão. Nesta mala que carrego, feliz, trago as promessas de fama e proveito que os deuses reservam aos filhos do futuro. Vocês enganaram-se, eu não mereço. Quem merece são, por esta ordem, o dr. Moniz, a TVI, as classes A/B, a Alta Autoridade para a Comunicação Social. Moniz e a TVI podiam não ter escolhido este formato. Nada obrigava as classes A/B a preferirem este programa. Era obrigação da Alta Autoridade rever as condições de licenciamento de uma estação que mudou de mãos e de filosofia (manter-se-á a prometida programação "tocada pelos valores religiosos do humanismo cristão", que privilegia "a formação do público" e emite a "maior percentagem de programas culturais" entre todos os concorrentes?). Protagonistas activos ou passivos da televisão que temos, cada um deles desempenhou papel de maior relevo do que eu na consagração do novo paradigma cultural e jornalístico televisivo português. Sim, é verdade. Saio feliz de mala na mão e braço acenando como os vencedores para vos mostrar que todos os sonhos são possíveis mesmo a inimaginável transformação de mim próprio, Zé Maria, filho de Barrancos, na supervedeta a quem o desastrado repórter encarregado de fazer perguntas nunca respondidas por quem abandonava a casa chamará não tarda "herói nacional". Mais, porém, do que estas resmas de notas novas de 10 mil escudos dentro da mala, mais do que a ambição de ser ajudante de cozinheiro, substituída (tão naturalmente) pelo mar de expectativas que a recepção apoteótica desta noite me anuncia, eu sou o ícone da sociedade nova que a televisão vem engendrando. O homem novo televisivo, escolhido entre aqueles que logram permanecer mais tempo eles próprios, com os seus póssamos, as suas órgias, os seus cidadões, as suas galinhas. E que como paga não precisará de saber cantar para vender milhares de discos; desenhar mais do que uns garatujos em forma de autógrafo para receber centenas de contos ou guiar um Ferrari por um ano; articular qualquer frase com algo parecido com sujeito predicado e complemento directo para rasgar sorrisos de beatitude nas mais vastas e diversificadas audiências. Mais do que o gaulês Édouard Guibert, o clássico professor de duas gerações de jornalistas de RTP e da SIC, eu trago aos ecrãs nacionais a promessa de uma revolução no jornalismo televisivo: a inclusão em rodapé permanente, ao lado dos tufões, dos golpes de estado, das intifadas deste mundo, das peripécias das novelas em exibição que mantenham suspensas as audiências dos telejornais; e como atracção maior, no lugar até agora ocupado pelos protagonistas da actualidade, perguntas tipo Teresa Guilherme a personagens virtuais de um universo sem substância. Sim, aquele meu encontro no Jornal Nacional, dentro de horas, com a amansada Manuela Moura Guedes, outrora a mais temível das entrevistadoras televisivas, prefigurará o derrube das fronteiras noticiosas em que os telejornais tinham até há pouco sabido conter-se (no dia seguinte o entrevistado será o namorado de uma ex-concorrente, mais conhecido por bolinha de pelo; ainda antes destas palavras serem impressas nada me indica que não seja a ex-namorada de um hipotético concorrente encontrada à porta de uma agência de viagens especializada em tours pela Amazónia). Conta-se que um magnata da imprensa nos EUA previu que um dia as guerras seriam declaradas por jornais que assim garantiriam o exclusivo do acontecimento. Um século depois, eis-me aqui, nos feéricos estúdios de Queluz, na pele do entrevistado exclusivo com que todos os Hearst sonharam, a vedeta a quem os programadores vestem, penteiam, amestram em jogos de antena cujas peripécias alimentam programas e noticiários nas exibições exigidas pela guerra de audiências. Previnem-me que será tudo uma questão de tempo. Que aquilo que os espectadores viram tão claramente visto no espaço de 24 horas - o meu pai, a minha mãe, os meus irmãos tão Caras, tão Vip, tão Lux na noite de passagem de ano para escassas horas depois lá em casa voltarem à condição de tão reais, tão o que são - me sucederá a mim quando outro Zé Maria for importado pela Endemol ou a SIC acorrentar audiências com um estratagema de ainda maior poder hipnótico. Sei-o bem e por isso escolhi este fato de Peter Pan. Como o herói de James Barrie eu gostaria de ficar eternamente menino. Eternamente imerso neste espectáculo de fantasia que o dr. Moniz e a TVI ofereceram aos portugueses, agradecidos, neste princípio de século e de milénio.

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