Um país de migrantes

Há dois anos, calculavam-se em mais de 200 mil os estrangeiros em Portugal, entre legais e clandestinos. Hoje são seguramente muitos mais, dado que não têm parado de crescer os fluxos migratórios, sobretudo ilegais e oriundos do Leste da Europa, estimados entre 40 mil e 80 mil. Mas não é seguro que os fluxos de entrada tenham suplantado os fluxos de saída. Portugal é hoje, sobretudo, uma plataforma de rotação de gentes e de trabalho, englobada numa teia de relações internacionais vasta e complexa. São conclusões de um estudo efectuado para o Observatório de Emprego e Formação Profissional feito há dois anos, mas que continua plenamente actual.

Portugal funciona como um "interface" relativamente às transferências internacionais de mão-de-obra. Os fluxos migratórios que emite e recebe têm, em traços gerais, as mesmas características: tal como "exporta" trabalhadores pouco qualificados que vão à procura de melhores salários em países como a Alemanha ou a Suíça, "importa" igualmente mão-de-obra pouco qualificada para as funções que vêm a desempenhar, tanto dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) como, mais recentemente, dos países de Leste. Em menos quantidade, mas também significativos são os fluxos de profissionais e técnicos qualificados ou semiqualificados: Portugal "exporta-os" para países em vias de desenvolvimento, mas também os "importa" dos países mais ricos que, entretanto, investiram no nosso país. Mais do que um país de emigração ou de imigração, Portugal é hoje "uma autêntica plataforma de rotação de gentes e de trabalho, englobada numa teia de relações internacionais vasta e complexa". Esta é uma das mais importantes conclusões do estudo "Os movimentos migratórios externos e a sua incidência no mercado de trabalho", realizado pela Geoideia para o Observatório do Emprego e Formação Profissional (OEFP), coordenado por Maria Ioannis Baganha, João Ferrão e Jorge Malheiros, com o objectivo de conhecer melhor os fenómenos da emigração e imigração a partir de Portugal. A empresa apresentou um estudo que responde ainda a outras duas preocupações: perceber o relacionamento entre os fenómenos migratórios de duplo sentido que, além do mais, revela o tipo de mercado de trabalho que está no centro destas movimentações internacionais de mão-de-obra (ver caixas).O mais preocupante, segundo as conclusões do estudo, é o facto de a substituição da mão-de-obra nacional se estar a dar num clima artificial de complementaridade. Isto porque, afirmam os investigadores, se verifica um profundo desajustamento entre a emigração e a imigração portuguesas, uma vez que as saídas de trabalhadores nacionais têm um carácter maioritariamente temporário, enquanto as entradas de estrangeiros parecem tender à permanência. "Os custos sociais a médio e a longo prazo podem vir a revelar-se elevados para a sociedade portuguesa, enquanto os custos económicos dependerão, pelo menos parcialmente, da evolução que se venha a verificar nos fluxos emigratórios", afirma a Geoideia.O estudo identifica três grandes fluxos migratórios para Portugal depois de 1975. O primeiro, imediatamente a seguir à Revolução de Abril e até inícios dos anos 80, tem origem sobretudo nos PALOP. O segundo ocorre durante a década de 80, no qual se verifica um crescimento relativo dos asiáticos (indianos, paquistaneses e chineses) e dos sul-americanos (especialmente brasileiros). A primeira metade da década de 90 parece indiciar uma terceira fase no ciclo da imigração, com um crescimento acelerado da população estrangeira legal (graças em parte aos dois processos de regularização extraordinária) onde as comunidades africanas voltam a assumir um maior protagonismo, mas também começa a ter peso uma imigração intra-europeia, com destaque para grupos de italianos, holandeses, alemães e franceses. Ao longo da última década, não parou de aumentar o número de estrangeiros registados: de cerca de 87 mil em 1986, passou-se para 114 em 1991 e para quase 173 mil em 1996, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Na mesma altura, a maior fatia destes imigrantes - 45 por cento - era oriunda dos PALOP.Por outro lado, verifica-se um crescimento dos trabalhadores clandestinos, atraídos sobretudo pelo forte dinamismo do sector da construção civil e obras públicas. E se, em 1996 (último ano analisado na totalidade pelo estudo), apenas se apontavam como emergentes os fluxos migratórios da Europa de Leste, os últimos anos vieram deixar clara a importância destes no mercado de trabalho português, embora em condições de total ilegalidade e consequente vulnerabilidade social e laboral.O facto de a maioria dos imigrantes instalados em Portugal serem nacionais de países europeus, do Brasil ou dos PALOP - cada grupo beneficiando de um estatuto próprio, mas sempre com amplos direitos de cidadania - implica que a legislação não se aplique, em toda a sua extensão, à maioria dos estrangeiros residentes no país. Os restantes - especialmente os oriundos dos países de Leste (provavelmente já uma das maiores populações de clandestinos existente no país) - acabam por estar, na prática, excluídos da legislação geral sobre imigração, sem beneficiar sequer da protecção constitucional que garante todos os direitos de cidadania (humanos, sociais e económicos) reconhecida aos estrangeiros legais. Com a agravante de que, dada a abolição interna de fronteiras na EU, basta aos imigrantes de países terceiros conseguirem entrar na fronteira externa para depois se movimentarem "livremente" entre os Quinze.Quanto à forma encontrada para travar a chegada de brasileiros e africanos de língua portuguesa, a política tem sido de restrição de concessão de vistos. Mas também esta não tem resultado como o previsto. Na parte final do estudo, os investigadores debruçaram-se sobre as perspectivas de evolução do fenómeno migratório perante diferentes cenários socioeconómicos. Relacionaram-se depois todos estes cenários entre si (referentes à mão-de-obra não qualificada), tornando fácil de perceber que, mesmo em situação de crise nacional e/ou internacional, a resposta mais adequada é, seguramente, a requalificação dos trabalhadores nacionais, associada a um enquadramento jurídico dos imigrantes (legalização) que, no entanto, não favoreça a imigração definitiva.Sugerem-se, em consequência, cinco intervenções de fundo: duas de âmbito geral - a criação de um observatório das migrações e dos fluxos internacionais de trabalho e a integração da problemática das migrações nas políticas de emprego e formação - e três direccionadas para a imigração. São elas a modificação da actual política de vistos, no sentido de se actuar, na prática, "de acordo com orientações de política objectivas e bem determinadas", a promoção da entrada dos imigrantes no sistema de segurança social (o que só agora está a ser feito) e a formação de técnicos de mediação cultural para evitar a guetização cultural e estimular uma cultura de melhoria sustentada de condições de vida, através da canalização de parte das poupanças na qualidade de vida dos próprios imigrantes.Pronto desde 1998, o estudo só agora está para publicação. Entretanto, a nova Lei da Imigração, que não só altera a política de vistos como também estabelece prazos para a permanência dos estrangeiros, em função do mercado de trabalho, tarda igualmente em ser publicada. E só nos últimos três meses se avançou finalmente com a inserção dos imigrantes (ainda clandestinos) na Segurança Social. O resultado destas respostas tardias é a movimentação, de per si, dos elementos que compõem o mercado de trabalho (associações e sindicatos representativos de imigrantes e associações patronais). O exemplo paradigmático é a criação, há três semanas, do Observatório para a Imigração, acordado no Porto entre a Associação de Industriais de Construção Civil e Obras Públicas, associações de defesa de imigrantes e representações diplomáticas de países de origem.

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