Bush ganha a presidência dos Estados Unidos por um voto

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos fez o que lhe pediram: encerrou as presidenciais de 2000 dando a vitória a George W. Bush. Contudo, falhou noutra tarefa igualmente importante. Não conseguiu pôr o carimbo da legitimidade neste complexo processo eleitoral. Um só voto deu a Casa Branca ao republicano, que corre o risco de descobrir, depois de começar o mandato, que não foi o favorito dos cidadãos. Al Gore estava a ponderar se deveria usar a palavra "concessão" ou "desistência" na comunicação ao país.

O desfecho das eleições presienciais nos Estados Unidos estava ontem à noite dependente da atitude do candidato democrata, Al Gore. Este anunciou que falaria ao país às nove da noite (já madrugada em Portugal) e as suas palavras eram aguardadas com mais expectativa do que as do vencedor, o republicano George W. Bush.Pode dizer-se que Bush estava refém de Gore. O republicano sabe que o seu mandato arrancará, no dia 20 de Janeiro, num clima de enorme clivagem entre os sectores republicano e democrata da sociedade. Gore poderia acentuar a atmosfera azeda, ou poderia fazer um apelo à pacificação.Al Gore começou na terça-feira a preparar o discurso de despedida do processo eleitoral de 2000. Às dez da noite, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, em Washington, divulgou a deliberação do caso "Bush contra Gore", que pôs ponto final na disputa pela vitória entre os dois candidatos. Num documento de 65 páginas que demorou horas a ser descodificado, o Supremo considerou "inconstitucionais" as recontagens feitas no estado da Florida, onde irregularidades nos boletins de voto levaram Gore a contestar os resultados. O Supremo é constituído por nove elementos e a deliberação foi aprovada por cinco votos contra quatro. O que significa que Bush se tornou o 43º Presidente dos Estados Unidos por apenas um voto."Uma vez que é evidente que qualquer recontagem que não consiga cumprir a data de 12 de Dezembro será inconstitucional, revertemos o julgamento do Supremo Tribunal da Florida que ordenava as recontagens", diz a frase chave da deliberação do Supremo federal. Na semana passada, o Supremo Tribunal da Florida tinha mandado recontar 45 mil votos que tinham ficado de fora do escrutínio. Decidiu que poderiam ser considerados válidos os que assinalassem uma intenção de voto. Os principais magistrados do país decidiram de forma diferente e, argumentando que esta contagem violava o princípio da Constituição sobre igualdade de direitos - porque validava votos que, noutros pontos do país, foram anulados -, proibiram as recontagens.Era o que pedia Bush, que recebeu assim os 25 votos a que a Florida tem direito no Colégio Eleitoral que, no dia 18, vai eleger o Presidente. Apesar de Al Gore ter recolhido mais votos no total nacional, Bush conseguiu a maioria no Colégio, ao eleger 271 grandes eleitores, contra 267 de Al Gore. O republicano ganhou pois onde era preciso. E, nos últimos dias, tornou-se necessário que ganhasse a opinião da maioria dos juízes do Supremo Tribunal. Depois de cinco semanas de guerra nos tribunais, coube a este órgão decidir a eleição presidencial, que se realizou a 7 de Novembro. Porém, os magistrados não conseguiram fazer esvaír as dúvidas que se colaram ao processo eleitoral. Não conseguiu dar legitimidade à vitória de George W. Bush.Na deliberação, os nove juízes deixam no ar que, se houvesse tempo (12 de Dezembro é a data prevista pela Constituição para o Colégio Eleitoral estar formado), poderia permitir que os votos da Florida fossem recontados. Para isso era necessário a criação de padrões uniformes para o escrutínio. O texto dos juízes é tão complicado que, num primeiro momento, pareceu aos analistas que era esta a decisão dos juízes. E as televisões disseram à nação que os juízes do Supremo federal tinham devolvido o caso aos tribunais da Florida, ordenando-lhes que fossem mais claros na definição das regras da recontagem. Horas depois, as televisões corrigiram a notícia.Dois dos magistrados que votaram contra Bush emitiram uma declaração de voto. "O tribunal errou. Errou ao aceitar este caso, que deveria ter devolvido ao Supremo da Florida, que deveria ter a possibilidade de decidir se as recontagens devem ou não prosseguir", escreveram os juízes John Paul Stevens e Ruth Ginsburg, que são de tendência liberal. Stevens acusou mesmo os colegas conservadores, que são a maioria, de terem realizado "um assalto federal" às leis do estado da Florida. "Um dia, o tempo sarará a ferida que foi hoje aberta na confiança [dos cidadãos em relação ao Supremo]. Uma coisa é certa. Podemos nunca saber ao certo quem foi o verdadeiro vencedor das eleições presienciais deste ano, mas sabemos quem saíu derrotado: a confiança da nação na imparcialidade do guardião da lei", escreveu Stevens.John Paul Stevens reconheceu, na sua crítica, que o Supremo está profundamente dividido. E que a decisão que tornou Bush Presidente foi tão ideológica como judicial. Ontem, o reverendo democrata Jesse Jackson anunciou que vai exercer o direito que a lei dá aos cidadãos e enviar equipas para contarem os votos da Florida. "Antes do dia 20 [quando acontece a tomada de posse], saberemos quem foi o verdadeiro vencedor", disse Jackson. O resultado das contagens dos cidadãos não terá efeitos práticos. Mas Jackson não quer perder a oportunidade de desautorizar George W. Bush.O republicano está consciente do cenário e, por isso, optou por não se pronunciar antes de ouvir o adversário. Al Gore decidiu por seu turno, ontem de manhã, desfazer as equipas de observadores que mantinha na Florida. Passou parte do dia a telefonar aos líderes democratas e, segundo revelaram os seus colaboradores, estava a ponderar o tom da comunicação ao país. Poucos analistas acreditavam na possibilidade de poder contestar a decisão do Supremo. A tradição manda que o derrotado use a palavra "concessão". Gore tinha outra no seu bloco de notas: "desistência". Se optasse por esta, retiraria mérito à vitória de Bush - ganhou porque o adversário desistiu antes do jogo chegar ao fim. O tom e a atitude de Gore estava, pois, a criar maior exectativa do que o discurso que se previa Bush pronunciasse também ontem à noite. O arranque do mandato do George W. Bush dependia das palavras de Gore, como reconheceu o influente político republicano John Engler: "Isto vai ser uma passagem de poderes como nunca se viu. A chave da nova presidência é conseguir cativar o povo".

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