Torne-se perito

A mais difícil cimeira dos últimos anos

As ambições de uma reforma mais ou menos profunda das instituições comunitárias durante a Cimeira de Nice, para preparar a União Europeia para o alargamento ao Leste, estão em vias de ser reduzidas ao mínimo. Não está sequer excluído o risco de um fracasso durante a mais longa cimeira da história da UE, que redundaria de imediato numa crise interna com consequências imprevisíveis sobre a moeda única e o processo de alargamento ao Leste. Mas, mesmo que termine com um acordo, Nice poderá marcar o início de uma nova fase da construção europeia, caso se concretize a quebra da rigorosa igualdade em que foi fundada a relação entre a França e a Alemanha. Os franceses vão resistir com toda as suas forças, mas se perderem esta batalha, o eixo franco-alemão, o motor da integração europeia, nunca mais será como antes. E a UE também não.

Quatro dias, é o prazo de que dispõem os chefes de Estado ou de governo da União Europeia (UE) durante a Cimeira que será hoje inaugurada em Nice, para concluírem um acordo sobre a reforma das instituições comunitárias imposta pelo alargamento ao Leste.Mas, apesar de todo o tempo previsto pela presidência francesa da UE para a conclusão da reforma, as negociações anunciam-se de tal forma complexas que não está excluído um fracasso nas negociações com a inevitável crise que se lhe seguirá.De Nice, a UE deveria sair com um processo de decisão mais rápido, eficaz e legítimo, de modo a evitar a paralisia da integração depois da entrada dos doze candidatos do Leste. Só que, na melhor das hipóteses, os Quinze não irão além de uma reforma de mínimos, com retoques muito pontuais no funcionamento das instituições comunitárias. Será, no máximo, uma reforma "mais ou menos forte, mais ou menos correcta", segundo a expressão de Michel Barnier, comissário europeu responsável pelas questões institucionais. "Esperemos que não se arrependam quando forem 25", afirmou outro comissário europeu sob anonimato.O pessimismo da Comissão resulta dos vetos cruzados dos grandes países à substituição da regra da unanimidade pela maioria qualificada numa série de decisões operacionais consideradas essenciais para permitir o funcionamento eficaz do mercado interno comunitário. Para os defensores do método de decisão comunitário - assente no triângulo institucional entre a Comissão, o Conselho de Ministros dos Quinze e o Parlamento Europeu - a perenização do direito de veto numa UE com quase o dobro dos seus actuais membros constitui uma fonte de inacção, paralisia, e, consequentemente, de declínio.São, igualmente, os grandes países que exigem uma alteração do funcionamento da Comissão Europeia, o orgão executivo da UE, com a redução dos seus membros para um número inferior ao de Estados-membros. Esta motivação, destinada a impedir o "inchaço" da instituição central da UE ao ritmo do alargamento ao Leste, feriu as sensibilidades dos mais pequenos, que acusam os grandes de procurar marginalizá-los. Do mesmo modo, a pretensão, uma vez mais, dos grandes, de verem o seu peso reforçado no conselho de ministros dos Quinze, de modo a garantir uma representação mais equilibrada da população comunitária nas decisões por maioria qualificada, esbarra com o mesmo tipo de resistências.Ironicamente, é o tema que no início das negociações suscitará menos expectativas - a flexibilização das condições para a criação das "cooperações reforçadas" destinadas a permitir a integração europeia a várias velocidades - que se mostra actualmente mais promissor. Com excepção desta última área, os lideres vão enfrentar precisamente os mesmos temas que estiveram na base da anterior tentativa falhada de reforma das instituições, em 1997, em Amesterdão. Mas, com a promessa entretanto feita pelos Quinze aos países de Leste de aderirem logo que estiverem preparados a partir de 2003, o calendário acelerou e a obrigação de resultado impõe-se.Só que, depois de dez meses de negociações, incluindo 10 reuniões dos ministros dos Negócios Estrangeiros, 30 sessões negociais dos representantes dos governos e uma cimeira de chefes de Estado ou de Governo, que originaram 116 páginas de texto e 150 propostas de alteração ao Tratado, as posições permanecem praticamente as mesmas de 1997. "Há quatro anos que oiço os mesmos argumentos", tem por hábito queixar-se o comissário da reforma. Com a agravante que o contexto actual é ainda mais negativo que em Amesterdão. A nova geração de lideres que em 1997 estava em vias de suceder a Helmut Kohl na Alemanha, ou já substituíra François Mitterand em França, Felipe Gonzalez em Espanha e Jacques Delors na Comissão Europeia, já provou sem margem para dúvidas que é muito menos integracionista do que a anterior. O eixo franco-alemão, o tradicional motor da integração, enfrenta há muito um défice de compreensão mútua dos seus respectivos lideres, enquanto que a Comissão continua a sofrer de um défice de credibilidade e afirmação do seu presidente, Romano Prodi. "O problema é que nenhum (dos líderes) está disposto a correr o menor risco face às opiniões públicas. Estão todos em pânico, e nenhum é capaz de dizer que a UE enfrenta um desafio gigantesco - o alargamento ao Leste - explicar porque é que é um imperativo e o que é necessário fazer para o tornar possível", lamentou um dos membros veteranos da Comissão Europeia.Sem um projecto e uma visão de futuro, as negociações foram marcadas pelas desconfianças mútuas entre grandes e pequenos países, pela multiplicação de vetos cruzados e, nos últimos dias, pela pretensão crescente da Alemanha de obter mais votos que a França no Conselho de Ministros europeu.Para Berlim, esta quebra da paridade rigorosa que marca as relações entre os dois países desde a fundação da UE, constitui a única forma de conseguir um acordo dos Quinze sobre o reforço do peso dos grandes países nas decisões por maioria qualificada. Só que a sua simbologia e peso político ultrapassam largamente a mera aritmética dos votos: o fim desta igualdade poderá abalar profundamente o eixo franco-alemão e modificar, em consequência, todo o processo de integração europeia.Mas, fiéis ao hábito de deixar para depois as decisões mais difíceis, os lideres vão definir já nesta cimeira a agenda do novo processo constitucional que será convocado a partir de 2004 para redigir uma constituição europeia, uma pretensão da Alemanha que exige uma clarificação, preto no branco, da partilha das competências entre a UE e os Estados-membros. Para os países mais integracionistas, o pós-Nice é muito mais importante que a actual cimeira, esperando que nessa altura os Quinze queiram, finalmente, enfrentar os problemas institucionais que serão provocados pelo alargamento. Para alguns países, aliás, o esperado resultado minimalista de Nice só será aceitável porque já existe um "pós-Nice".

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