Wilde maior que a vida

Refulgente, majestoso, pronto a cair. Assim viveu Oscar Wilde até morrer, há exactamente cem anos. Como todos os espíritos grandes, não coube no seu tempo. Podemos continuar a repetir infinitamente: "Cada homem mata aquilo que ama".

Muito antes de Marilyn, de Elvis ou dos Beatles, hordas de fãs quase se afogaram para receber o jovem poeta e dramaturgo Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde, no seu desembarque em Nova Iorque na noite de 2 de Janeiro de 1882. Quando os repórteres lhe perguntaram o que tinha a declarar, Wilde, vestido como um príncipe da Renascença, casaco de veludo verde até aos pés e grande gola levantada, respondeu: "Nada, além do meu génio." Era o princípio da triunfante tournée americana, que durou um ano, com mulheres a acotovelarem-se para arrancar uma madeixa de cabelo do flamejante irlandês, nos intervalos das 160 conferências que ele proferiu. Datam desse período as célebres imagens que Wilde encomendou ao mais chique fotógrafo da Nova Iorque de então, Napoleon Sarony. Retrato do artista enquanto jovem: refulgente, majestoso, em pose para o futuro. Tinha razão quanto ao futuro - como teve razão em quase tudo, disse Jorge Luis Borges. Nenhum homem do seu tempo viria a ser tão ampla e democraticamente citado, das marchas de orgulho gay às universidades, das colunas das revistas femininas à publicidade, da esquerda à direita ou vice-versa. É "o ar do tempo", também deste tempo: o seu foi-lhe insuficiente. Refulgente, majestoso - e pronto a cair, acrescentaria o biógrafo Richard Ellmann. Depois do derradeiro festim público da Inglaterra vitoriana que foi a condenação a dois anos de trabalhos forçados por "conduta vergonhosa para com homens", Oscar Wilde, exilado, arruinado e doente, morreu num medíocre quarto de hotel em Paris, quando uma infecção nos ouvidos degenerou em meningite, segundo a convicção de Ellmann, facilitada por uma sífilis antiga nunca bem curada. Foi há exactamente cem anos.Finíssimo perscrutador das pulsões humanas, ainda Freud não se debruçara sobre o divã, na vanguarda dos limites do socialismo, ainda Marx mal se praticava, ao visionário Wilde não bastou escrever (na "Balada do Cárcere de Reading") que "cada homem mata aquilo que ama" ou (em "The Soul of Man Under Socialism") que "a verdadeira perfeição do homem reside não no que ele possui mas no que ele é". Viveu, generoso, pródigo e perigosamente, de acordo com o que escreveu. Na Inglaterra vitoriana em que haveria de passar a maior parte dos seus anos, fez diferença nascer (a 16 de Outubro de 1854, em Dublin) irlandês. E mais diferença terá feito a extraordinária família que foi a sua. Do pai, o reputado cirurgião William Wilde, arqueólogo nas horas vagas, herdou o gosto pelo esplendor da antiguidade. Da mãe, a poeta Jane Elgee, a extravagância mais irredutível. O percurso de Mrs. Wilde está recheado de episódios lendários. Adolescente numa família unionista, começou por publicar poemas ferozmente nacionalistas, assinando Francesca Speranza Wilde, por acreditar que entre os seus ascendentes italianos estaria nada menos que Dante Alighieri. Ao jovem Oscar, que cultivava uma semelhança física com Shakespeare e Nero, fantasias desta grandeza assentavam bem. Mãe e filho partilhavam com grande sentido de humor o horror à respeitabilidade vitoriana e chegaram a pensar numa sociedade para a abolição da virtude. Já com sessenta e tantos anos, conta-se que Mrs. Wilde terá dito a um jovem efebo: "Quando chegar à minha idade, vai perceber que o pecado é a única coisa que vale a pena."Foi também a mãe que lhe deu a ler, por exemplo, a poesia de Walt Whitman, com quem Wilde se viria a encontrar no ano da sua digressão americana. O encontro entre os dois (Whitman tinha mais do dobro da idade de Wilde), nos modestos aposentos do mítico poeta americano, é narrado de forma extraordinária na biografia de Ellmann: beberam vinho de baga de sabugueiro (por ele, Wilde disse que teria bebido até vinagre), falaram da natureza, da arte, e dos homens e o jovem irlandês regressou com a impressão de ter conhecido "o maior homem, o mais simples, o mais natural, o mais forte, o mais próximo do Grego que encontrei na vida". Whitman apreciou-lhe a delicadeza e tê-lo-á beijado nos lábios, num segundo encontro, de que não há relatos, além do do próprio Wilde.Regressando: do Trinity College de Dublin, Wilde vai para Oxford, onde se torna um notável estudante de história clássica, filosofia e literatura, cultiva um faustoso guarda-roupa, e brilha a expor as contradições do puro esteticismo, defendendo que a arte, enquanto auto-descoberta, ajuda o homem a ser melhor: "A arte é o individualismo mais honesto que o homem conheceu". Nos últimos anos de Oxford, namorisca uma Florence e preserva amizades íntimas com alguns homens. Depois, instala-se em Londres, publica os primeiros poemas, as primeiras peças, vai à América, casa com Constance Lloyd, uma jovem aristocrata culta e silenciosa de quem terá dois filhos, escreve contos infantis e, entre 1891 e 1895, vive o seu período mais fértil de criação literária, "O Retrato de Dorian Gray" - o seu Fausto, retumbante sucesso - e as peças "O Leque de Lady Windermere", "Salomé" ou "A Importância de se Chamar Ernesto".São também esses os anos da paixão que o haveria de levar ao cárcere de Reading. Lord Alfred Douglas - o "querido Bosie" a quem Wilde dirigirá a longuíssima carta de amor "De Profundis" - é um insolente filho de marquês, experimentado em escapadelas de Oxford com prostitutos de tuta-e-meia. Será este o amor tremendo que faltava ainda a Wilde. Dos meios insultos velados do pai marquês ao escândalo em praça pública é um passo. Patético interrogatório no tribunal, pena sem apelo por conduta imoral, aduladores (muitos) e amigos (alguns) a afastarem-se, cautelosamente. Yeats, que aos 18 anos fora ouvir Wilde numa conferência, e a quem Wilde - como era sua natureza - dera provas de grande generosidade - foi dos que ficou: fez circular um abaixo-assinado em sua defesa."Cada vez que se ama é a única vez que se ama" é uma das muitíssimas frases citáveis de Wilde. E infinitamente poderíamos citá-lo. Na sua reavaliação do bem e do mal, das contradições e da complexidade de cada um, escreveu Richard Ellmann que Oscar Wilde é um de nós. Quer dizer, deste tempo. Melhor, do futuro: se a Inglaterra de Blair anda aflita sem saber (oh, ordem, oh, decência!) que Wilde celebrar, ainda não lhe chegou aos calcanhares.

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