Godot, eternamente misterioso

Desde os 20 anos que Miguel Guilherme quer encenar "À Espera de Godot", de Samuel Beckett. Foi desta, num palco despojado, para não atribuir significados além dos que a peça contém, e sem sonoplastia, porque as palavras e os movimentos têm uma musicalidade própria.

Num espaço da sala nova do Teatro da Comuna, em Lisboa, onde Miguel Guilherme encena e interpreta "À Espera de Godot", de Beckett, há duas plateias onde os espectadores se sentam frente a frente. Ao centro fica o palco, delimitado lateralmente por duas portas fechadas com cortinas azuis salpicadas de branco, a mesma cor do chão.Há apenas uma pedra onde Miguel Guilherme (Estragon ou Dodot) se senta para tentar, e depois conseguir, descalçar uma bota. E uma árvore despida. Pedra e árvore estão, transversalmente, uma em frente à outra, e a sua ordem será invertida na segunda parte como que para os espectadores partilharem da mesma forma um espaço cénico intimista. E se, na primeira parte, a pedra cobre parcialmente as folhas da árvore desenhadas no chão a cinzento, na segunda são um reflexo ilusório de uns troncos nus.Não se ouvirá música ao longo da peça. Ou, pelo menos, composições musicais. Porque há o silêncio e a sua interrupção pela palavra, pela musicalidade das frases, dos passos, do abrir e fechar das cortinas. Do gesto do autoritário Pozzo (Diogo Dória) a chicotear o chão - primeiro com veemência, depois enfraquecido. Do som da mala e do cesto que o asno Lucky (Francisco Nascimento) carrega, a roçarem o palco. De umas botas largadas pelo ar. De um jogo com a troca de chapéus entre Dodot e Didi (Vladimir, interpretado por Adriano Luz), de...São as personagens de "À Espera de Godot", peça encenada centenas de vezes (este ano foi levada à cena em Lisboa, por João Fiadeiro, n'A Capital, por Luc Bondy, no Festival de Almada) e sobre a qual já foram escritos centenas de textos. As personagens não são apenas humanas; existem também os objectos cénicos e ocupam um palco depurado, para não serem criados mais significados além dos que existem em "À Espera de Godot", defende o encenador."A árvore e a pedra são elementos essenciais e indissociáveis de tudo o resto e também das personagens. A árvore está ligada a tudo o que é cerebral, ao Vladimir. A pedra a Estragon, a tudo o que é terreno, às necessidades humanas. Eventualmente, podiam não estar lá, mas a decisão não é arbitrária: não se pode criar uma peça a partir de uma leitura exterior - tem que se partir dos dados que o texto nos dá e o texto é tão claro..."São personagens que "não querem preencher o vazio que o texto reflecte". Querem ficar vazios. São personagens sem compaixão, que só não estão sós porque os outros "são o eco da sua existência". Será na segunda parte que Vladimir e Estragon reforçam esta luta entre solidão e relação com o outro: quando, através das rábulas ditas a meias e dos movimentos corporais simétricos, funcionam como um espelho que por vezes quer ser rompido.Em palco, a peça ultrapassa a dimensão de um texto teatral para interrogar o próprio teatro. "Não se passa nada, as personagens não evoluem, cortam qualquer tentativa de referência ao passado e rejeitam a memória. Limita-se a trazer microacções simples dentro de um espaço e aborda todas aquelas acções que o teatro considerava menores." Miguel Guilherme defende que a peça "é muito misteriosa e ninguém sabe do que realmente se trata". Apesar da ressalva, diz: "A minha leitura é não ter leitura e, se tivesse que usar um chavão, seria que é uma reflexão irónica sobre a condição humana. É uma peça sobre a tentativa desesperada de dar um sentido à vida ou de iludir a morte."Lucky entra em palco com uma longa corda agarrada ao pescoço, puxada por Pozzo, um corpulento Diogo Dória que usa uma gabardine e que, com uma crueldade cheia de humor, dá ordens ao seu escravo. Ele diz "Cesto" e o servil Lucky logo se desloca para lho entregar. Dória quer mostrar as habilidades daquele homem-objecto de olhar baço que só pensa com o chapéu na cabeça, e grita: "Pensa, porco!" E é a única vez que Francisco Nascimento usa a palavra, para, num discurso cacofónico, falar do homem na sua dimensão intelectual e física - evocando a religião, a ciência, o desporto, a literatura... Mas é logo interrompido pela fúria de Pozzo, que pisa o chapéu do pensador: "Acabou-se o pensamento."O discurso de Lucky, para o encenador, resume a peça: "pela tentativa vã de, através das palavras, dar um sentido à existência". Ressalva porém que qualquer explicação sobre as personagens pode ser redutora. "Gosto de ver os actores a tentarem relacionarem-se com o texto, mas no geral as personagens e a peça não podem ser explicadas - têm que ser vividas, partilhadas e conservar a dose de mistério que a caracteriza."Desde os 20 anos que Miguel Guilherme alimenta a vontade de encenar "À Espera de Godot". Há dois anos esteve para a pôr em cena no Teatro S. João do Porto, o que acabou por não acontecer. Mas nem o facto de terem sido encenados outros três "Godot" o fez desistir de trabalhar numa peça que, apesar de carregada de burlesco, não é uma comédia, género que marca a sua carreira de actor. "O Beckett classifica-a como uma tragicomédia. Para nós foi difícil não tornar isto numa 'blague'", diz. Defende o teatro imperfeito, um teatro "sem ser limpinho, que reflicta as nossas dúvidas e contradições". E que empurre o espectador para dentro dele.

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