Um motim chamado PJ Harvey

A maior parte dos interessados ficou à porta. Do Rivoli, para onde o concerto de PJ Harvey foi transferido à última da hora, mau tempo "oblige", mas também da nova loja FNAC do Porto, cuja festa de inauguração era apenas para um restrito punhado de convidados. Os ânimos exaltaram-se e a polícia teve de intervir, mas Pollly Jean actuou mesmo só para 800 felizardos.

Maldita chuva. Para muitos, a festa de inauguração da nova loja da FNAC no Porto ficou estragada: o mau tempo obrigou a organização a mudar de planos, e PJ Harvey acabou por não actuar ao ar livre para uma plateia sem "numerus clausus", mudando-se de armas e bagagens para o restrito Rivoli. Apenas 800 pessoas tiveram direito a assistir a um brilhante desfile de brilhantes canções, conduzido por uma irresistível figura feminina de vestido negro e pele muito branca que percorreu em cerca de uma hora a memória de cinco álbuns incontornáveis. Quem não conseguiu entrar resignou-se como pôde, entre promessas de motim e incitamentos a uma vingança servida bem fria.Alternativas não haveria muitas, mas, mesmo assim, a FNAC não conseguiu escapar à violência verbal de quem esperou mais de duas horas por um bilhete esgotado. Os responsáveis pela inauguração da loja do Edifício Palladium ainda tentaram transferir o concerto para o Coliseu, mas os preparativos de última hora para o Portugal Fashion inviabilizaram aquele que seria o melhor antídoto para os contratempos atmosféricos de anteontem. Para muitos, porém, a FNAC pecou por excesso de zelo: de manhã, PJ Harvey até se mostrara disposta a actuar na rua mesmo que chovessem canivetes, e o público seguia-lhe de bom grado o exemplo. Até porque foi à chuva que se travou a luta pelos bilhetes, e, molha por molha, mais valia que fosse ao som das mil vozes de Polly Jean. A maioria dos interessados acabou por ficar à porta, depois de os 800 ingressos gratuitos terem voado em pouco mais de meia hora. Os ânimos exaltaram-se, e a polícia teve mesmo de intervir para pôr um fim à prática das modalidades "destruição de tapumes" e "arremesso de lama", energicamente exercitadas ao som de gritos de guerra como "Vamos todos para a FNAC roubar" ou avisos mais ou menos amigáveis, género "Isto vai dar merda, senhor agente!". Apesar de tudo, no meio da confusão ainda havia quem estivesse disposto a perdoar a desfeita: "Nós somos portugueses, compreendemos tudo", asseguraram ao PÚBLICO quatro amigos frustrados vindos expressamente de Viana do Castelo para (não) assistir ao concerto.Só por volta das 22h45 - quase três horas depois do previsto - uma delgadíssima PJ Harvey, vestida exactamente como na capa do novo álbum "Stories From the City, Stories From the Sea" e empoleirada no alto de uns tacões de diâmetro milimétrico, entrou no palco do Rivoli. O público estava sentadinho e assim se manteve até ao "encore"; de resto, sempre que alguém cometia a ousadia de levantar-se, lá aparecia a funcionária do teatro para a reprimenda bem-educada. A sessão-maravilha começou a solo, com o velhinho "Rid of Me", de 1993. Talvez alguém lhe tenha explicado a saga que foi preciso atravessar para conseguir bilhete, e PJ Harvey tenha decidido ser assim generosa, não se cingir ao contratado resumo do material mais recente e escancarar a porta das suas melhores canções num registo de voz que oscilou sem vacilar entre o falsete mais hipnotizante e uns graves irrepreensíveis.Já com os seus cinco músicos em palco - que se sentavam no chão sempre que Polly Jean decidia atacar o palco sozinha -, PJ percorreu grande parte de "Stories..." ("The Whores Hustle and the Hustles Whore", "Good Fortune", "You Said Something", "One Line", "A Place Called Home", "Beautiful Feeling", "Kamikaze", "Big Exit" e "This is Love"), que o público pareceu já conhecer q.b.. Quem não conhecia, ficou a saber que o disco é "vintage" PJ Harvey: torrencial. Mas foi sobretudo com "Send His Love to Me", de "To Bring You My Love" (1995), bem como com "Dry" e "Sheela-Na-Gig", de 1992, que as palmas soaram mais sinceras e o sorriso de Polly Jean se fez mais feliz. Da plateia voaram rosas vermelhas, discos pedidos cruzados e alguns "Polly, we love you". PJ agradeceu mil vezes - uma das quais num português matraqueado, como é da praxe - e pediu desculpa pelos imprevistos, embora os ofendidos estivessem bem longe, possivelmente a carpir mágoas no MacDonald's.A despedida, uma hora depois, fez-se com "Somebody's Down". Ou não. Tremor de terra no Rivoli: o público exigia um "encore". PJ regressou de garrafinha de água e pandeireta na mão, tomou de assalto "The Sky Lit Up" - um dos poucos temas de "Is This Desire?" que integraram o alinhamento -, e teve direito a mais quatro enormes salvas de palmas. A fechar, já depois do bem-sucedido "Down By the Water", ainda houve tempo para "Nickel Under the Foot", um tema da banda sonora de "The Craddle Will Rock", do americano Tim Robbins, que alcochoou a voz de PJ Harvey no conforto sóbrio de um acordeão e de um violoncelo. A festa pública acabou por ser privada, mas quem ficou para ver perdoou os encontrões e as partidas do tempo. E não tarda nada aparecerá na FNAC para comprar o último disco de Polly Jean.

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