Picasso, o escultor

Decorria o ano de 1900 quando Pablo Picasso, então com 19 anos, descobriu, numa exposição retrospectiva de Rodin, uma escultura moderna. Um pormenor insignificante, não fosse o caso dessa escultura ter interessado o jovem artista de tal maneira que influenciou toda a sua obra, levando-o a um percurso de pintor-escultor. Apesar da faceta de escultor de Picasso ser menos conhecida do que a de pintor, a verdade é que ambas foram paralelas ao longo da sua carreira. Valem por si só, uma sem a outra. Mas, quando se juntam as peças dos dois puzzles, percebe-se que se influenciaram e complementaram. Que Picasso foi um artista completo e não apenas um grande pintor que, por acaso, também esculpia. É essa a primeira ideia que assalta quem visita a exposição "Picasso Sculpteur", no Centro Georges Pompidou, em Paris. São salas e salas repletas de esculturas, com poucas cadeiras a convidar à contemplação. São necessárias algumas horas (e um bom par de pernas) para apreciar devidamente todas as peças em bronze, ferro, arame, chapa, madeira, colagens de cartão, papel, areia... São cerca de 300 as obras que contam a história do escultor Picasso, como nunca antes foi contada numa exposição parisiense. A primeira incursão do artista espanhol pelo mundo das formas moldadas a três dimensões deu-se em 1902, em casa do escultor Emil Fontbona, com "Mulher sentada". Três anos mais tarde, e inspirando-se nas personagens circenses que pintou no período rosa, esculpe "Cabeças de Saltimbancos", em bronze. Usa o mesmo material em várias cabeças de mulher que retratam Fernande, sua modelo e companheira.Cria as primeiras figuras em madeira, influenciadas pelo entalhe de Gaugin, e elabora trabalhos inspirados nas esculturas ibérica, oceânica e africana. Seguem-se as colagens, que desenvolve com Braque: junções de tudo com tudo o que aparece à mão. Entre estas há várias construções que representam guitarras, mas trabalhadas de formas diferentes - muitas vezes opostas - às dos instrumentos tradicionais. Uma guitarra foi também o objecto central da sua primeira instalação, em 1913.O que Picasso aprende com a escultura é transportado para a pintura. A partir de 1912, já durante o cubismo, o artista espanhol inclui nos seus quadros papéis pintados, maços de tabaco amachucados e outros elementos do quotidiano, criando "quadros-objecto". Por esta altura, já vem recriando nas telas a ilusão de rugosidade e terceira dimensão, imitando o efeito visual das colagens.Ao contrário de outros artistas, que se refugiavam na escultura para relaxar quando não conseguiam resolver um determinado problema na sua pintura, Picasso esculpia como pintava e gravava: com um objectivo em mente. A escultura nunca foi uma distracção, mas uma constante na obra do mestre espanhol, apesar de algumas interrupções. A prova disso são os dias e dias que perdeu a desenhar os projectos de esculturas nos seus cadernos de trabalho.Para Emmanuel Guigon, que escreveu no suplemento espanhol "ABC Cultural" a propósito desta mostra, é quase como se Picasso, por vezes, se cansasse das limitações da tela e do pincel e procurasse novas possibilidades. Como se buscasse outra forma (diferente dos quadros do cubismo) de criar a terceira dimensão. De ocupar o espaço. "[Nesta exposição] descobre-se o que apenas se adivinhava sem nunca se ter visto realmente. Que Picasso foi um dos principais actores do processo de emancipação da escultura moderna", escreve Guigon.Uma das colaborações mais importantes na obra escultórica de Picasso foi com Julio González, descendente de uma família de ferreiros artistas. Os dois conheceram-se em 1900, em Paris, e tornaram-se amigos, passando muito tempo juntos em Paris e Barcelona, terra natal de González. Mas uma discussão que nunca foi esclarecida afastou-os durante muitos anos. Em 1921 fazem as pazes e, entre 1927 e 1932, trabalham juntos.É González quem ensina a Picasso a arte de moldar e soldar o ferro e ajuda-o a realizar algumas das suas obras maiores, dando forma, em ferro, aos esboços do pintor espanhol. A primeira é um projecto de monumento para a campa de Apollinaire, para assinalar, em 1927, a passagem de dez anos sobre a morte do poeta. Mais tarde, quando Picasso já domina a arte, González empresta-lhe a sua forja e vê-o trabalhar. É já sozinho que Picasso cria a versão em ferro de "Mulher no jardim" (1929-1930), ainda a pensar no monumento a Apollinaire. No entanto, nenhuma das propostas que faz é aceite pela comissão das comemorações. Mas Picasso também influencia o trabalho de González, levando-o a misturar diversas matérias primas - ferro, latão, e bronze - e a obter novos materiais mais fáceis de cortar, dobrar e entalhar. "González saberá encontrar o caminho para uma obra autónoma, iniciando para uma nova geração de escultores, na continuidade de Picasso, a escultura em ferro no espaço", escreve Marielle Tabart, conservadora do Museu Nacional de Arte Moderna francês, num pequeno catálogo publicado a propósito da exposição. No mesmo período em que trabalha o ferro, a presença de Marie-Thérèse (mãe da sua segunda filha e uma de várias mulheres que inspiraram a sua obra) leva Picasso a criar diversas esculturas eróticas e nus. A maioria são figuras sensuais e serenas, mas algumas esculturas representam a sexualidade de forma brutal. Durante o Verão que se segue, enche o seu caderno de trabalho de formas meio-fálicas, meio vaginais.Em 1930 compra o castelo de Boisgeloup, onde se instala para esculpir. É aqui que nascem diversas pequenas figuras em madeira esculpida e várias "Banhistas". Picasso cria também esculturas longilíneas em gesso que, anos mais tarde, servirão de molde a esculturas em bronze. A ruptura definitiva com Olga Khokhlova, ainda sua mulher e mãe do primeiro filho, em 1935, marca o início de um dos piores períodos da vida do artista. Olga exige o castelo Boisgeloup, para o contrariar, e Picasso muda-se com Marie-Thérèse e a filha de ambos para um atelier emprestado. Para além de alguns pequenos trabalhos, Picasso não volta a esculpir antes de 1940.São as guerras civil espanhola e a Segunda Guerra Mundial que levam Picasso a dedicar-se novamente à escultura. "A cabeça de Dora Maar" (1941) e "O Homem com o Carneiro" (1943) são alguns dos trabalhos deste período. "Toda a arte de Picasso, nestes anos negros, oscila entre dois extremos: visões de pesadelo de retratos dramáticos ou monstruosos que reflectem o terror, o humor negro das naturezas mortas com espinhas de peixes ou de uma salsicha enrolada picada por um garfo, para enganar a fome e o frio; mas também escapadelas para a frescura de um ramo de flores sobre a mesa, o vigor de uma planta de tomates diante de uma janela, a sensualidade do corpo nu de Dora Maar" defende, no catálogo, Brigitte Léal, conservadora responsável no Museu Nacional de Arte Moderna francês. As obras esculturas "de pesadelo" de Picasso são posteriores a "Gernica", que pintou em 1937.Dora Maar seguiu-se a Marie-Thérèse nos papéis de musa inspiradora e companheira de cama de Picasso. Mas também ela, por sua vez, cede o lugar. Em 1947 é já com Françoise Gilote (que lhe dará dois filhos) que Picasso se instala em Vallauris, onde inicia o seu trabalho de ceramista. Para além de pintar cerâmica utilitária, o artista cria vasos antropomórficos e com a forma de corujas, que se assemelham a esculturas. Quando se quer divertir, transforma objectos por recuperar em esculturas hilariantes, muito imaginativas, a que a presença dos filhos pequenos não será alheia. "La Guenon et son petit", "La grue" e "A cabra" são algumas dessas esculturas.Nos últimos anos de vida, regressa à chapa dobrada e colada, ao cartão e papel e retoma o princípio dos planos sobrepostos e das construções no espaço. Colabora também com o escultor sueco Carl Nesjar, que pratica a técnica "bétograve" (consiste em arremessar areia ou brita contra superfícies de betão). Baseando-se em obras pintadas, desenhos a lápis ou maquetes de Picasso, o sueco realiza esculturas monumentais, a preto e branco, em França, Espanha, nos Estados Unidos e na Escandinávia. Picasso tem a oportunidade de ver reconhecida a importância da sua obra escultórica, em 1966, com a realização de uma grande exposição retrospectiva em Paris, por ocasião do seu 85º aniversário. Morre em 1973, sendo enterrado no jardim do seu castelo em Vauvenargues, perto do Monte St. Victoire, onde vive com a sua última mulher, Jacqueline Roque. E é a ela que Picasso diz frequentemente, nos últimos anos de criação: "As minhas estátuas são metáforas plásticas.

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