Loiças de Sacavém passam de fábrica a museu

Foi uma das principais fábricas do país. Ao longo dos seus 150 anos de vida testemunhou avanços tecnológicos, transformações no tecido social e lutas sindicais pioneiras. Hoje, a antiga Fábrica de Loiça de Sacavém deu lugar a um museu de cerâmica que pretende reavivar a sua história. Visita a não perder.

Por ali passaram centenas de trabalhadores, gerações de operários, mestres e "rapazes" de oficina. Hoje, a antiga Fábrica de Loiça de Sacavém deu lugar a um museu e viu a maior parte dos seus terrenos ocupada por uma urbanização de luxo. O velho forno 18 lá continua, coração do Museu de Cerâmica, aberto ao público há pouco mais de um mês.Fundada em 1856 (ver caixa), a fábrica foi, dentro do ramo, um dos mais importantes pólos industriais do país. Chegou a ser dirigida por ingleses, serviu de estandarte à organização fabril salazarista, foi palco de emblemáticas lutas sindicais e enfrentou diversos períodos de crise, tendo o último dos quais conduzido ao seu encerramento, em 1994, ano em que a maquinaria existente começou a ser vendida. "Mais do que salvaguardar um património físico de inquestionável valor, o que o museu pretende é prestar homenagem a todos aqueles que aqui trabalharam, preservando um património social insubstituível", explicou ao PÚBLICO Ana Paula Assunção, directora dos museus do concelho de Loures, durante uma visita guiada às instalações.Se nos recordarmos que alguns dos operários a que se refere, cerca de 150, ainda não receberam as idemnizações a que têm direito, compreendemos a extensão do papel que o museu pode desempenhar: "Continuamos a recebê-los aqui. Recorremos a muitos para reconstituir a história da fábrica. Foi um deles que nos disse, por exemplo, que pessoas foram 'retratadas' na escultura que está na entrada principal do museu [o baixo-relevo "A Fornada", de 1946, da autoria de Armando Mesquita]", sublinha Ana Paula Assunção.O museu, composto por dois módulos distintos - um dedicado à história da fábrica, o outro a exposições temporárias que revelem as reservas existentes e algumas colecções particulares -, um auditório, um centro de documentação e um espaço de oficinas de aprendizagem e restauro, foi desenhado por Paula Jorge em torno do forno 18. No piso inferior, o núcleo em que se passam em revistas marcos da história daquela unidade fabril através de painéis, pequenas máquinas e mesas que ilustram estágios da produção, existe um percurso dedicado a invisuais. "Uma das nossas grandes preocupações, pouco presente em muitos dos museus nacionais, é tornar os conteúdos acessíveis aos que sofrem de uma deficiência. Neste caso, são os invisuais, e mesmo os amblíopes, que têm acesso a outro tipo de equipamento."O equipamento de que fala Ana Paula Assunção é simples, mas permite aos invisuais aceder à informação disponível a qualquer visitante. Gravações audio contam a história da fábrica e do museu, uma passadeira plástica indica a direcção em que se deve seguir, uma mesa leva a experimentar as diversas fases de produção - desde o molde ao decalque -, uma barrica ilustra os métodos de transporte utilizados e uma plataforma giratória apresenta as texturas e formas da loiça de Sacavém. "Toda esta exposição é propositadamente táctil. A quantidade de informação não é prioritária. A prioridade vai para a forma como ela é apresentada."Uma das principais preocupações do projecto foi a conservação do Forno 18, um forno a lenha construído em 1850, segundo métodos tradicionais, quando havia uma série de novas tecnologias à disposição: "O mais curioso neste forno - para além do seu impressionável estado de conservação - é o facto de ter sido construído pelos operários da fábrica com a tecnologia que conheciam e as matérias-primas que tinham à mão. Ainda hoje o poderíamos utilizar."A forte iluminação escolhida para o interior do forno faz pensar nas altas temperaturas que os trabalhadores enfrentavam, carregando pesadas caixas, protegidos apenas por sacas de sarapilheira encharcadas. "As condições de trabalho eram muito duras. Grande parte das fotografias do Centro de Documentação comprovam-no. Trabalhavam descalços, muitos com 11 e 12 anos, às vezes 14 horas seguidas. Talvez seja por isso que a luta pelos direitos dos trabalhadores aqui teve tanta expressão."Subindo as escadas até ao primeiro andar, encontram-se alguns dos prémios ganhos pela fábrica em certames nacionais e internacionais, com destaque para um "honroso terceiro lugar" na Exposição Universal de 1878, e as aguarelas de Carlos Ramos (1932), retratando as várias classes de operários existentes ou os grandes armazéns.No piso superior, a exposição temporária - "Itinerário Pela Produção da Fábrica de Loiça de Sacavém" - reúne exemplares que de alguma forma são marcos na produção de Sacavém. Desde as primeiras peças saídas da fábrica, no século XIX, inícios do século XX, às últimas "fornadas". "A intenção museológica das exposições temporárias é diversificar o mais possível. Podemos recorrer a um tema vasto, como aqui, ou a um mais restrito, como a apresentação das peças mais significativas de uma colecção particular."

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