Anos 90 e depois

Flora Sussekind acaba de publicar um notabilíssimo ensaio sobre "A literatura brasileira dos anos 90". Mesmo que fosse uma mera descrição, já isso nos seria útil, dada a indigência de informações de que padecemos. Mas é muito mais do que um panorama. É um diagnóstico extremamente lúcido que permite ficar a conhecer não apenas o que se passa no Brasil, mas também reflectir sobre as grandes mutações da literatura contemporânea.

1. Uma das mais notáveis ensaístas brasileiras é Flora Sussekind, mas infelizmente nós não a conhecemos - mas afinal quem é que nós conhecemos no ensaísmo brasileiro se mesmo o prémio Camões para António Cândido deixou quase toda a gente de boca aberta? Pois Flora Sussekind acaba de publicar no esplêndido suplemento de "A Folha de São Paulo", de nome "Mais", e com data de 23 de Julho, um notabilíssimo ensaio sobre "A literatura brasileira dos anos 90".Mesmo que fosse uma mera descrição, já isso nos seria útil, dada a indigência de informações de que padecemos. Mas é muito mais do que um panorama. É um diagnóstico extremamente lúcido que permite ficar a conhecer não apenas o que se passa no Brasil, mas também reflectir sobre as grandes mutações da literatura contemporânea. O ensaio chama-se "Escalas & Ventríloquos", e procura ultrapassar as habituais abordagens mais ou menos lamechas em que nos lamentamos sobre os males da época e a decadência dos costumes, num estilo que foi de todas as épocas e não nos permite entender nenhuma em especial. Para Flora, a última década poderá caracterizar-se por uma tripla condição: crise de escala, tensão enunciativa, geminação entre económico e cultural. As variações de escala explicariam os "exercícios, por vezes paradoxalmente concomitantes, de expansão e compressão", que passam por aspectos tão diversos como "a narrativização da lírica" ou a "miniaturização narrativa" (gostaria aqui de indicar uma notável obra recente, sobre a qual penso vir a escrever: "Trouxa Frouxa" de Vilma Arêas, na Companhia das Letras). E a análise destes processos múltiplos poderá conduzir "via escalas móveis, (a) um exercício crítico de correspondências genéricas (entre prosa em redução e poema em expansão), artísticas (entre produção plástica e literária) e conjunturais (entre cultura e economia)". O texto de Flora Sussekind aponta em seguida para uma apaixonante correlação entre o domínio das artes plásticas (mas devemos considerar que hoje este é também o domínio instabilizado do vídeo, do cinema, da música ou do design) e a literatura, para reconhecer um espaço de variações que vão de "trabalhos bidimensionais que se projectam em direcção ao espectador" a "figuras escultóricas transparentes, abertas, corroídas internamento por fatias, vazias, parecendo fadadas, por seu turno, à autodestruição, ao despedaçamento". E é a partir do que a autora considera uma "reiterada exposição de uma situação de desmedida" que podemos encontrar uma homologia entre determinadas situações contemporâneas de financeirização da economia, e de esvaziamento estatal, para a "discussão das simbologias do valor e a reconceitualização da forma a partir exactamente de seus factores de instabilização, de suas relações de escala, de suas equivalências com alguns dos mecanismos dominantes do mercado financeiro". Nestas circunstâncias, "a passagem de uma moeda de difícil conversão para outra mais maleável à conversão universal, mas sem qualquer substância, e cujo câmbio passaria a se apoiar artificialmente numa perda acelerada de reservas, parece hiper-potencializar, a seu modo, não só a sensação de desmaterialização do dinheiro, já característica da situação inflacionária, mas também a convivência com a ausência de garantias e medidas ideais de valor e a dependência crescente de mercados financeiros desregulados e de uma economia baseada em maleabilidades estruturais. Não sendo de estranhar, nesse sentido, por um lado esforços de estabilização directamente proporcionais a tais desmaterializações e instabilidades estruturais".2. Teríamos aqui uma parte da explicação para o actual culto dos grandes nomes e das grandes obras, e ao mesmo tempo para uma poética de retorno a valores artesanais cultos ou populares-arcaizantes. E também para a necessidade de explicar uma dimensão sentenciosa que fornece, em fórmulas mais ou menos mediáticas ou discretas, uma sageza arcaica (o que vai do pior, como Paulo Coelho, ao melhor, como Manoel de Barros). Mas teríamos também uma forma de analisar certos mecanismos de desmaterialização da trama narrativa, de que talvez os melhores exemplos sejam o entre nós já conhecido, e amplamente reconhecido pela crítica, Bernardo Carvalho, ou o ainda por conhecer, mas digno de o descobrirmos depressa, André Sant'Anna, autor de um desconcertante "Sexo" (Du Bolso).Mas teríamos também uma hipótese de compreensão para outra tendência da literatura contemporânea (e não apenas brasileira), a da "criminalização sistemática das questões sociais": como vemos nos romances de Rubem Fonseca (que em Portugal nunca encontrou o público que tem noutros lugares) ou em livros como "Elogio da Mentira" de Patrícia Melo (recentemente editado entre nós pela Campo das Letras). Do ponto de vista da dicção, o que daqui resulta são situações de ventriloquia em que registamos casos de cisões numa só voz ou de desdobramentos e duplicações de personagens ou problemáticas através, por exemplo, de "personagens-dobradiça": e teríamos a considerar aqui os casos de Silviano Santiago, de André de Sant'Anna (contraste entre monólogo interior e imagens de televisão) ou Bernardo Carvalho, ou de "sucessivas figurações da morte autoral" (Valêncio Xavier) ou ainda de "dissecação da máquina de escrever" (como em Zulmira Ribeiro Tavares, escritora de assinalável interesse que precisamos de começar a ler).Tudo isto poderia sintetizar-se na conclusão de Flora: "desdobramentos ficcionais, variações de acento, auto-supressões que parecem apontar para uma espécie de figuração intelectual agónica, de desconfiança sistemática da própria legitimidade, da possibilidade de consideração não mercantil da actividade literária ou da interacção crítica com leitores.consumidores". Resta-nos saber até que ponto esta análise serve para entender alguma da realidade literária portuguesa, e é evidente que sim, mas por outro lado permite sublinhar o que por contraste falta e o que excede na nossa cena cultural. E teremos então uma excelente plataforma para dialogarmos melhor.3. Para leitores mais apressados ou com dificuldades de acesso ao livro brasileiro (o que é um pouco a situação de todos nós), assinalo uma obra magnífica, que tem o mérito de estar neste momento no "top" das vendas no Brasil: trata-se de "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", antologia publicada pela Objectiva, e que foi organizada por Ítalo Moriconi (poeta e notável ensaísta, que tive a oportunidade de conhecer, já lá vão bastantes anos, num dos meus seminários no Brasil). Este livro é precioso porque nos permite: a) ler algumas dezenas de contos absolutamente excepcionais (de Machado de Assis a Bernardo de Carvalho); b) descobrir pelo caminho autores que nos são radicalmente estranhos (falo de nomes como Dalton Trevisan, Otto Lara Resende, Ivan Ângelo, mas também de Hilda Hilst, Ana Cristina César, Márcia Denser, Sérgio Sant'Anna, Caio Fernando Abreu, Maria Amélia Mello, Myriam Campello, João Gilberto Noll ou Valêncio Xavier); c) percorrer década após década os grandes momentos da literatura brasileira; d) ter um panorama da escrita contemporânea.4. Antes de férias, deixo algumas sugestões de leitura (que são outros tantos livros sobre os quais gostaria de vir a escrever): em primeiro lugar, a poesia de Fiama Hasse Pais Brandão em "Cenas Vivas" , o regresso de uma escrita sumptuosa num grande romance dos nosso dias, o de Maria Velho da Costa, intitulado "Irene ou o Contrato Social", a nova presença, num dos seus mais belos textos, de Maria Gabriela Llansol ("Onde Vais, Drama-poesia?") e a reflexão fundamental de Boaventura de Sousa Santos com "Crítica da Razão Indolente". Depois, livros como "Ursa Maior" de Mário Cláudio, "Um Estranho em Goa" de José Eduardo Agualusa, a "Poesia Reunida" de Fernando Pinto do Amaral, "Livro de Receitas" de Luís Adriano Carlos, "Os Que Vão Morrer" de Jaime Rocha (para mim, uma extraordinária revelação), "Arte Negra" de António Cabrita, "Lisboas" de Armando Silva Carvalho, as reflexões sobre o corpo da brasileira Ieda Tucherman ("Breve História do Corpo e de seus Monstros", na Vega), de Paulo Cunha e Silva ("O Lugar do Corpo") e as contribuições do colóquio organizado por Manuel Valente Alves e António Barbosa sobre "O Corpo na Era Digital". E ainda o catálogo da primeira "Experimenta Design" e "Matérias Sensíveis" de Filomena Molder. Sem esquecer "Se Eu Morrer Antes de Acordar", o último volume de contos de Ana Teresa Pereira na Relógio d'Água, o livro de ensaios de João Barrento, "Umbrais", na Cotovia, a notável tese de José Gabriel Pereira Bastos sobre a imagem europeia de Portugal (na Celta) e as belíssimas crónicas de Agustina Bessa-Luís que a Guimarães acaba de editar. Boas férias.

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