A última estreia no Parque Mayer

Com as demolições a caminho e um futuro que a Câmara de Lisboa se recusa a esclarecer, o Parque Mayer assistiu anteontem à última estreia da sua história de muitas décadas. O público encheu o Maria Vitória e os aplausos ouviram-se até de madtrugada. A presença de muitos jovens promete que não serão os "catrapilas" a enterrar uma parte da memória de Lisboa.

Manuel Mania Empecilho e Barby de Guimarães são os bombos da festa. Os autores da revista que anteontem subiu à cena no Teatro Maria Vitória, e que será a última a ser representada no velho Parque Mayer, não poupam aqueles a quem culpam da morte do recinto e da crise deste género de espectáculo: "doutores e figurões/carrilhitos e carrilhões". A animação e o frenesim da estreia invadiram pela última vez o cenário, agora deprimente, do Parque Mayer, na Avenida da Liberdade. Apinhados entre a esplanada do restaurante "Bibikas" e as portas largas do Maria Vitória, centenas de pessoas celebraram, noite fora, aquilo que poderia ser um enterro, mas era quase uma festa. Com a primeira sessão a acabar já perto das duas da manhã e a segunda a começar pouco depois, uma pequena multidão de espectadores, actores, bailarinas e oficiais de todos os ofícios que constroem a magia deste espectáculo genuinamente lisboeta, acompanhou demoradamente, em intervalos e longas esperas, um f+bpassamentof-b de que quase ninguém falava, mas que pairava no ar, como a morte sobrevoa todos os funerais.Havia gente da casa, cromos inconfundíveis que passaram a vida entre os muros do Parque, gente pouca que ainda cheira a manjerico e à Lisboa antiga, mas havia, sobretudo, gente igual à que se vê nos outros teatros, no cinema, nas ruas da cidade.Quem não se via eram os oficiais da cultura e muito menos os da Câmara de Lisboa. Os mesmos que ignoraram insistentes pedidos do PÚBLICO para que esclarecessem o obscuro futuro de um importante espaço da cidade - um espaço do qual apenas que se sabe que vai dar lugar a um grande empreendimento imobiliário.João Queirós, 35 anos, programador e animador cultural, era um daqueles que traduzia, em poucas palavras, o ambiente da noite: "Sinto uma emoção forte, por saber que isto vai fechar, mas é uma emoção contida." Sem esconder que foi a primeira vez que assistiu a uma revista, não deixou de acrescentar que o fim do Parque Mayer lhe sugere "uma raiva profunda e uma grande tristeza - mas também força para lutar". Isto é: lutar contra a aparente inevitabilidade de desfechos como este.Lá dentro, numa sala esgotada, tal como a da sessão da madrugada, Manuel Mania Empecilho, protagonizado pelo actor Heitor Lourenço, pagava pela sombranceria com que uma suposta élite cultural trata um género a que chama "menor". No palco via-se a entrada do Parque Mayer com um imenso cartaz dominado por um enérgico manguito do Zé Povinho. "Hoje Morte à Revista - Original de Manuel Mania Empecilho e doutros detractores." E os dois sinais de trânsito proibido pintados no cenário advertiam: "Proivido revista" e "Acexo pruivido". Numa outra cena, intitulada "Que Barbaridade", Manuel Empecilho já se mostrara de braço ao peito, cabelo puxado para trás, fato completo e gravata de seda, na companhia de Barby. "Felizmente que aquele brutamontes não me pôs o braço direito ao peito. Senão como é que eu ia assinar a minha demissão e mais os despachos? Só para ti foram 22 mil contos", desabafava o penteadinho da fatiota.Com textos de Mário Rainho, Nuno Nazareth Fernandes e José Fanha e música de Carlos Alberto Moniz, o último espectáculo deste Maria Vitória -"Tem a Palavra a Revista" - é um grito de indignação e uma vingança contra os detractortes da revista. Omnipresente - em sucessivos quadros interpretados por artistas como Maria João Abreu, José Raposo, Carlos Gonçalves, Maria Armanda, Lena Coelho, Cristina Oliveira, Heitor Lourenço, Fátima Severino, João Brás e Mané Ribeiro - está a revolta contra os que desprezam o género e os tempos gloriosos do Parque Mayer.Isto sem esquecer as rábulas de crítica política e futebolística, a brejeirice indispensável, as lantejoulas, as plumas e as cores, as bailarinas e o fado de Maria Armanda. "Uma luxuosa revista à portuguesa", como lhe chama o roteiro do espectáculo.Em matéria de crítica social, por exemplo, o Fadinho do Corvo Pós-Moderno fala dos muitos passarões que povoam a cidade, mas também do "pavão" que estava no Palácio da Ajuda e foi obrigado a "bater a asa". E acaba assim, a pensar na Lisboa de hoje e no Parque Mayer de antigamente: "Eu sou um corvo/não me roubem a cidade/que eu vejo do meu telhado/desde a minha mocidade".Para quem nunca pôs os pés no Parque Mayer, a surpresa não podia ser maior: Entre a assistência, a parte dos menores de 40 anos é provavelmente maioritária e a dos menores de 30 está longe de ser negligenciável. Ana Coelho, 25 anos, técnica de informática, é um dos muitos jovens que não se envergonham da tradição revisteira. "A revista é um espectáculo de cariz popular, mas não é um espectáculo menor." A seu lado, cinco outros jovens, quatro dos quais já vieram várias vezes ao Maria Vitória, partilham a sua opinião. Um deles evoca o lado "subversivo" da revista e outro, o médico dentista Carlos Silva, confessa que lhe faz "um bocado de pena ver o Parque Mayer fechar porque não há muitos outros sítios onde se faça revista".Inesperada, para alguns, poderá parecer também a opinião de José Fanha, um dos autores de "Tem a Palavra a Revista", mais conhecido de outro tipo de intervenções. "A minha atitude não é de saudosismo porque é óbvio que este género de espectáculo, que existe há séculos e tem atrás de si as cegadas, o teatro de cordel e outras manifestações semelhantes, vai continuar aqui ou noutro lado, porque tem o seu espaço próprio e o seu público." José Fanha, que diz ter apenas "uma participação muito pequenina" nos textos, entende que "é necessário incentivar todos os fenómenos culturais", desde os mais vanguardistas aos menos vanguardistas. Quanto ao Parque Mayer, diz que que este espaço "tem uma história ligada às pequenas histórias da cidade" e que, por isso "Lisboa devia ter uma ternura especial por ele e recuperá-lo."Perto das duas da manhã, depois de muitas e longas ovações, caiu o pano sobre a última das estreias do velho Parque Mayer.

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