Na intimidade do Casal Ventoso

Não é só o circuito de abandono de um casal toxicodependente. "Noites", de Cláudia Tomaz, documenta também uma intimidade. A que nasceu entre um intérprete, descoberto no Casal Ventoso, e a realizadora, que se assumiu como personagem feminina. O filme, uma primeira obra, vai ser exibido no Festival de Veneza.

O anúncio oficial, na próxima semana, da programação do Festival de Veneza (entre 30 de Agosto e 10 de Setembro) confirmará um contigente português significativo, em concurso e nas secções paralelas, mas um desses títulos pode ser já divulgado: "Noites", de Cláudia Tomaz, vai estar na Semana da Crítica. Ao que tudo indica, é um objecto singular. É uma primeira obra, produzida por Paulo Branco, e é um filme que não foi contemplado com subsídios do Instituto do Cinema Audiovisual e Multimédia. Foi recusado várias vezes no concurso para primeiras obras e a realizadora e o produtor esperam o resultado de mais um concurso, com o filme já praticamente acabado e o reconhecimento de Veneza confirmado. "Havia um 'timing' para fazer o filme, e foi preciso avançar", diz Paulo Branco, "porque é esse o papel de um produtor: saber o que se perde quando se atrasa."O que é que se podia perder? Explica Cláudia Tomaz, 27 anos: "O facto de o Paulo ter apoiado sempre o projecto e ter decidido avançar com a produção sem subsídio tem a ver com o tipo de filme que é. 'Noites' funciona com coisas muito frágeis, é um misto de documentário e de ficção. Há partes filmadas no Casal Ventoso, bairro que estava a desaparecer, e além disso eu queria filmar numa altura precisa, no Inverno. Além disso, as pessoas seleccionadas para interpretarem as personagens estavam em processo de desagregação, era preciso começar a filmar.""Noites" passa-se hoje, nas ruas, nos autocarros, nos subterrâneos do metro de Lisboa, no Casal Ventoso, no circuito de tédio, vício e desespero a que se abandona um casal de toxicodependentes, João e Teresa. João prostitui-se para arranjar dinheiro, Teresa está doente, mas já não faz os tratamentos no hospital. Há uma casa abandonada que lhes serve de único ponto de referência. Isto podia ser visto de longe - Cláudia Tomaz, por exemplo, mora em Campolide, à beira do Casal Ventoso, e "via as coisas a passarem-se, sentia uma certa intimidação" -, e não seria prejudicada a caução de documento social. Mas ao longo do processo de pesquisa - durou mais de três anos -, Cláudia Tomaz seria implicada directamente no processo. O projecto de misturar documentário e ficção ("foi isso que sempre me interessou") cumpriu-se de tal forma que "Noites", hoje, já não é só a história de duas personagens. Passou a ser um documento sobre um pedaço da vida da realizadora.O trabalho como assistente de Pedro Costa no filme "No Quarto de Vanda" (filmado no bairro das Fontaínhas, no quarto de Vanda Duarte, uma das protagonistas de "Ossos" - ver caixa) implicou-a sem contemplações. "O que vivi durante esse trabalho deu-me uma certa apetência para abordar o assunto de forma mais honesta, por dentro", explica. Depois, no processo de "casting" para "Noites", feito debaixo de um viaduto, entre o pavilhão do centro de metadona do Casal Ventoso e a carrinha onde se trocam seringas, conheceu João Pereira, 30 anos, com formação em informática e electrónica, que estava numa fase em que vivia já no Casal. Encontrou o João do seu filme, começou a acompanhar a vida dele - "Ia para lá todos os dias, fiquei completamente baralhada" -, com ele começou a trabalhar no argumento inicial, "no sentido de uma verdade", e essa intimidade que nasceu passou para as filmagens. Cláudia fala da rodagem como se ela tivesse decorrido numa "sala fechada": as cenas eram lançadas, "mas deixavam-se as coisas correr e a câmara [de vídeo] captava-as"; uma equipa reduzida participava nesse "jogo bastante intenso" com "vulnerabilidade e compreensão". Resta dizer, para o círculo da intimidade se fechar, que depois de procurar a Teresa do filme, e por que as coisas não funcionaram com a pessoa inicialmente escolhida, Cláudia assumiu a personagem.Não foi só acidente de percurso, reconhece, e era a garantia, para si mesma, de que o olhar do filme não seria exterior. "Meti-me na pele da personagem, senti que entrava na carne. Não queria ter um olhar 'voyeurista' sobre o assunto. Não queria filmar um jardim zoológico, por isso este filme é muito cru, sem fantasias. Era preciso perceber o que estava nestas pessoas. Senti nelas um limite: o tédio de viver, que a droga leva ao extremo. Acompanhei o João no filme e na vida, ele estava em processos contínuos de degradação e de queda, e com essa mistura, às vezes, deixei de saber onde é que eu própria estava."Licenciada em Ciências da Educação, no ramo de cinema, pela Universidade Nova de Lisboa, assistente de João Mário Grilo ("Longe da Vista"), José Álvaro Morais ("Peixe-Lua") e Paulo Rocha (em "O Rio do Ouro"), que considera "um visionário", um "poeta" - destaca "Verdes Anos" e "Mudar de Vida" -, Cláudia Tomaz sente agora a estranheza. A sua exposição emocional e física, o documento íntimo que é "Noites", vai estar numa mostra de filmes e com ele Cláudia vai ter de cumprir o ritual de entrevistas e conferências de imprensa, como se estivesse a falar de um objecto que já não lhe pertence. "É fantástico, mas ainda não estou preparada", diz. Como é que se faz?Claúdia Tomaz, que tanto gosta do classicismo de Ozu ou de um filme "radical" e "estranho", como "Gummo", de Harmony Korine, que a arrebatou, ainda hoje se pergunta: "Representei ou estava a viver aquilo?"

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