No princípio era Satchmo

Eles aí estão, os primeiros sinais discográficos da celebração dos 100 anos do nascimento de Louis Armstrong. Um centenário singular, talvez o único que se comemora em dois anos consecutivos, 2000 e 2001. Por razões que o próprio Armstrong muito ajudou a criar.

A história é conhecida mas a "noblesse" de um centenário obriga à sua repetição. Ao longo das suas muitas páginas e declarações autobiográficas Louis Armstrong declarou-se nascido em New Orleans a 4 de Julho de 1900. Uma data redonda, mesmo a jeito para simbolizar o nascimento de uma música não concebida mas em grande parte emancipada pelas mãos do próprio Armstrong. Sempre pronta para as lendas fáceis e disponível para a construção de mitos, a história adoptou o calendário como bom. Mas face à escassez e pouca credibilidade de muitos dados relativos à vida quotidiana da América negra rural na fronteira dos séculos XIX e XX, as dúvidas sobre a veracidade das palavras e recordações de Satchmo (o nome popular de Armstrong) foram-se se acumulando. Principalmente quando em 1983 James Lincoln Collier publicou uma biografia do trompetista em que argumentava a impossibilidade de determinar com exactidão a data de nascimento que, no entanto, fazia recuar para os últimos anos da última década de 1800.Até que, quase 20 anos depois da sua morte (6 de Julho de 1971), o crítico Gary Giddins encontrou e publicou a certidão de baptismo de Louis Armstrong donde consta a sua data de nascimento. Um documento que mudou definitivamente o calendário até então estabelecido: na realidade, Armstrong nasceu um ano e um mês mais tarde, em Agosto de 1901. Só o dia 4 se salvou. Depois de uma primeira intenção, que chegou a ser anunciada, de fazer de 2000 o ano das grandes celebrações discográficas (cuja dimensão não deve andar muito longe da que rodeou a comemoração em 1999 do centenário de Duke Ellington), a verdade é que tardam as confirmações das prováveis (e desejadas) integrais a levar a cabo pelos principais grupos editorais detentores dos mais relevantes ciclos da carreira de Armstrong, da Sony (Columbia) à BMG (Rca) e Universal (Decca e Verve).A primeira a colocar-se no terreno acabou por ser a Sony através de uma série de novas reedições que embora não expressamente identificadas com o centenário dele não podem ser desligadas. Inesperados serão, talvez, os primeiros títulos seleccionados, todos eles localizados na fase dos All Stars, adiando assim o ciclo das obras-primas dos Hot Five e Hot Seven dos anos 20 - páginas definitivas da história do jazz - que, aliás, dado já pertencerem ao domínio público, foram objecto de excelente tratamento por outras editoras (caso da britânica JSP).Cronologicamente, o primeiro título dos novos lançamentos é "Satch Plays Fats". Datado de Abril/Maio de 1955, é uma viagem de Stachmo e do seu All Stars (com Trummy Young, Barney Bigard, Billy Kyle, Arvell Shaw, Barrett Deems e, por vezes, Velma Middleton) pela estante de originais de Fats Waller (a maioria deles nascidos da colaboração com Andy Razaf, certamente o autor com o maior nome da história do jazz: Andreamentena Razafinkeriefo!) Mas esta é a edição que vale a pena, em detrimento do anterior compacto, inexplicavelmente construído em torno de uma maioria de "alternate takes" de menor qualidade, deixando de lado as "masters" usadas na edição original de 1955. Na continuação de um outro tributo a W. C. Handy, produzido no ano anterior, "Satch Plays Fats" é um disco do escalão superior da produção do ciclo All Stars (cujos membros - com a clara excepção das primeiras formações onde militaram Earl Hines, Jack Teagarden, Barney Bigard, Big Sid Catlett e Cozy Cole - nunca constituiram uma mais valia para o próprio Armstrong). Mas mesmo assim trata-se de um título secundário face à prioridade bem mais urgente dos verdadeiros "best of Louis Armstrong", semeados em épocas anteriores. Só que é bom nunca esquecer que durante (quase) toda a sua longa carreira o discurso bilingue de Stachmo - trompete e voz - está recheado de manifestações do seu génio musical. Com Armstrong, o mais seguro é mesmo ouvir tudo. Porque em qualquer esquina pode estar a felicidade.Bem menos atractivo é "Ambassador Satch", já aqui referido a propósito de uma anterior reedição em compacto (menos completa do que esta). Nada a mudar ao que então ficou escrito: "Mais uma compilação das inúmeras horas gravadas pelos All Stars de Louis Armstrong, no tempo em que começou a ser usado, mundo fora, como embaixador de um governo que só reconheceu a sua grandeza quando ela já não era tão grande. Uma jogada política de mestre, amplamente confirmada pelo diagnóstico assinado, em 1955, pelo correspondente do "Times" em Estocolmo: "America's secret weapon is a blue note in a minor key". Desta vez, os palcos são europeus (Amesterdão e Milão), o reportório nada acrescenta de original, com os principais cavalos-de-batalha dos All Stars a sucederem-se numa rotina que duraria anos". O All Stars é idêntico ao de "Satchmo Plays Fats" (Edmond Hall substitui Bigard e Velma Middleton está ausente) mas sabe-se agora que a legenda usada anteriormente - "Gravado durante os concertos da digressão europeia de 1955" - não é rigorosa: algumas faixas são do ano seguinte e nasceram num estúdio de Hollywood."Aníbal atravessou os Alpes em 218 AC com 37 elefantes e 12 mil cavalos, Louis Armstrong atravessou os Alpes em meados do século XX com uma trompete e cinco músicos". É assim, com a grandiloquência do gesto épico de Hollywood, que o narrador Edward R. Murrow introduz esse documento precioso e muitas vezes fascinante que é "Satchmo The Great", um filme de 63 minutos sobre a sua vida. Produzido por Edward R. Murrow e Fred W. Friendly, os responsáveis por um famoso programa de televisão da CBS, "See It Now", o documentário foi rodado em 1955/56, durante digressões mundiais do All Stars. Alternando extractos de concertos com relatos da carreira de Satchmo e entrevistas com o trompetista, há momentos imperdíveis, como a deliciosa entrevista parisiense onde Armstrong discorre sobre o calão e a história do jazz, as suas relações com o mundo e as outras músicas - do rock 'n' roll ao bebop ("bop? what's that?"), do hot versus cool ("cool is a cat that's playing his trumpet and is too lazy to hear high notes"), La Scala e Paris ou o concerto grosso de "St. Louis Blues" (e os comentários finais) com Leonard Bernstein dirigindo uma orquestra sinfónica integrada pelo All Stars. Mas a versão discográfica de "Satchmo The Great" será sempre um objecto amputado. A vida musical de Armstrong não pode contar-se à margem das imagens do modo como bebia a própria vida. Porque cada gesto, cada expressão de Louis Armstrong era também a sua própria música. E isso transpira da audição de "Satchmo The Great".Dado o pontapé de saída das comemorações, o melhor do centenário de Satchmo ainda está por chegar. E quanto mais cedo melhor. Para que todos possamos chegar ao dia 4 de Agosto de 2001 conhecendo de cor as melhores notas da sua vida.Columbia 64927; 78' 57"; 1955; dist. SonyAmbassador SatchColumbia 64926; 54' 14"; 1955-56; dist. SonySatchmo The GreatColumbia 62170; 63' 24"; 1955-56; dist. Sony

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