Quando os filmes eram a cores

No ciclo que a Cinemateca promove em Julho - e que continua em Setembro - vamos ver criaturas que pediam a cor a cada plano, para o triunfo do "kitsch" e do sonho. Betty Grable, Carmen Miranda, Rita Hayworth, Gene Tierney, Esther Williams, ou as incontornáveis Maureen O'Hara, Maria Montez, Yvonne de Carlo são algumas das "Rainhas do Technicolor".

Inventado por Herbert Kalmus e Daniel Komstock e experimentado pelos seus criadores num filme-amostra, datado de 1917, "The Gulf Between", o "technicolor" simples, resultante de uma sobreimpressão de vermelho e verde, foi sendo incorporado na indústria, quase sempre pela inclusão de uma colorida sequência capital, a destacar do filme - como nos casos paradigmáticos de "O Pirata Negro" (1926), veículo para a acrobacia de Douglas Fairbanks, ou "O Rei dos Reis" (1927) de Cecil B. De Mille.Pouco rentável para longas-metragens, o sistema impõs-se apenas em 1935 com "Becky Sharp" de Rouben Mamoulian, protagonizado por Miriam Hopkins. O esplendor do "full-technicolor", já com uma paleta essencial de quatro cores, começou a mudar os rostos das estrelas: o "low-profile" de Janet Gaynor cintila em "A Star is Born", Carole Lombard brilha loiríssima em "Nada é Sagrado" (ambos de 1937, ambos de William Wellman), Marlene Dietrich destila a sua luxuriante fotogenia no disparatado delírio de "O Jardim de Alá" (1936), Judy Garland pousa os sapatos de rubi na estrada cor-de-tijolo de "O Feiticeiro de Oz", Vivien Leigh reina suprema com a sua cabeleira ruiva e as suas fitas verdes sobre "E Tudo o Vento Levou".No entanto, nenhuma delas poderia aspirar ainda ao título honorífico de "Rainha do Technicolor", que a Cinemateca Portuguesa vem agora recuperar para o que é (poderia sê-lo mais ainda, como veremos) a possibilidade de um olhar original sobre a produção hollywoodiana. Só na década de 40, com prolongamento pela de 50, se entendeu o valor icónico do policromatismo exagerado, à base de cores puras e sem quaisquer veleidades realistas. Ao contrário do que mais tarde acontecerá com os tons soturnos de dominantes acastanhadas, o glorioso "technicolor" constituía, nos tempos áureos, uma mais-valia de sonho e de evasão.Não por acaso, corriam os tempos da guerra e o "technicolor" serviu para actualizar géneros de divertimento puro, como o musical ou o filme-de-capa-e-espada, bem como para moldar as queridas dos soldados, da pin-up mais pirosa daqueles tempos conturbados, Betty Grable (dela veremos neste ciclo "Down Argentine Way", 1940, e "Primavera nas Montanhas", 1942, ambos ao lado da "brazilian bombshell", Carmen Miranda), à ruivíssima Rita Hayworth, figura de proa da Columbia, deslumbrante em "Cover Girl" (1944), divina no duplo papel de "Down to Earth" (1947), mulher e Terpsicore, musa da dança, perturbante na Doña Sol do "Sangue e Arena" (1941) de Blasco Ibañez, ao lado de outra lídima representante da realeza "technicolorida", Linda Darnell.Grable vai estar, aliás, no centro do musical da Fox cuja principal marca distintiva passava pela cor e exotismo dos cenários, num momento em que Hollywood, perdida grande parte do mercado europeu, se virava para a América Latina e, especialmente, para o Brasil, donde importava Carmen Miranda, fabulosa no mais moderno dos musicais da Fox, "Sinfonia de Estrelas" (1943), ao lado da outra rainha loira do estúdio, Alice Faye e sob a batuta do mago da coreografia a preto e branco na Warner da década anterior, Busby Berkeley. Era o triunfo do "kitsch" em forma de mulher, capaz de pôr um cabaz de fruta à cabeça ou de vestir os mais estapafúrdios figurinos. As estrelas clamavam pelo berrante de todas as cores, o arco-íris passara-se para o lado das novas divas de Hollywood.Se estas são rainhas indiscutíveis, na medida em que pedem a cor em cada plano, parecendo não existir sem ela, não podemos esquecer que uma delas, Rita Hayworth, deixou a sua marca mais inesquecível no império do monocromático, em "Gilda" (1946). Outro tanto poderá dizer-se de Gene Tierney, a mulher do retrato, no preto e branco contrastado de "Laura" (1944) e uma das estrelas do "film noir", entre Preminger e Mankiewicz, embora mereça inteiramente a sua presença neste ciclo com o genial "Amar Foi a Minha Perdição" (1945) de John M.Stahl (ao lado de uma princesa, pelo menos, do "technicolor", Jeanne Crain), diabólica e apaixonada, para além de dois "westerns", "O Regresso de Frank James" (1940), de Fritz Lang, e "Belle Starr" (1941) de Irving Cummings.Mais polémica me parece a escolha de Ava Gardner (porventura a imagem mais bela de mulher jamais fixada em celulóide), não porque discuta a sua opulência em filmes como os escolhidos, "Show Boat" (arrastando na "boleia" a canora e desenxabida Kathryn Grayson), "Pandora" (ambos de 1951) ou "Ride Vaquero" (1953), do injustamente esquecido John Farrow. É que não se ente a ausência - já que falamos da primeira divisão estelar, filmada a cores, porque a cor era já quase obrigatória nas grandes produções - de Elizabeth Taylor, de Lana Turner, ou até de Jennifer Jones.Quanto à rainha da piscina, mais até que do tecnicolor, Esther Williams, só temos a lamentar que se repitam os batidos "Bathing Beauty" (1944) e "A Linda Ditadora" (1949). Teríamos preferido espreitar "menoridades" como "Million Dollar Mermaid" ou "The Duchess of Idaho". E aqui façamos "raccord" com a lástima maior: perdeu-se a oportunidade de fugir, por uma vez, à predominante tendência autorista e canónica da Cinemateca, não ignorando as pequenas rainhas da cor, quantas vezes estrelando filmes de série B ou assinados por realizadores menos conhecidos. Que pena não podemos ver, por exemplo, filmes de Arlene Dahl, Rhonda Fleming, Piper Laurie, Lizabeth Scott, ou Debra Paget, muitas delas moldadas pelo "technicolor" e catapultadas para a fama por exclusiva responsabilidade da cor.E resta referirmo-nos às mais incontornáveis das rainhas, as indistrinçaveis do "technicolor", mesmo que Maureen O'Hara tenha brilhado sem cores em "O Vale era Verde" ou em "Rio Grande". Os seus filmes neste ciclo fazem justiça à sua fotogénica cabeleira ruiva e ao seu talento para ornamentar grandes aventuras de piratas ou "western" multicoloridos: "O Pirata Negro" (1942) de King, "Buffalo Bill" (1944) de Wellman, "The Spanish Main" (1945) de Borzage e "Sindbad, o Marinheiro" (1947) de Richard Wallace. Muitos outros se lhe poderiam juntar. Também Virginia Mayo, a decorativa loira de inesquecíveis "espadeiradas", não se pode queixar: de "The Princess and the Pirate" (1944), a "O Facho e a Flecha" (1950) e a "Epopeia dos Mares" (1951) de Walsh teremos todos os ares da sua graça.Contudo, estrelas que não fizessem sentido sem o tecnicolor, se calhar, só há duas: Maria Montez, o suprassumo do "kitsch" exótico, odalisca de todos os haréns, companheira de Sabu em todos os orientes de cartão pintado, encenados em filmes que se parecem uns com os outros como gotas de água. Já no segundo fôlego do ciclo, em Setembro, lá a teremos em "Arabian Nights" (1942), como Scherazade, "The White Savage" (1943) e "Cobra Woman" (1944).Também em Setembro, surgirá a minha rainha exótica favorita, Yvonne de Carlo, cantora, bailarina, fulgurante diva de inacreditáveis "prazeres culposos" (tradução de circunstância para "guilty pleasures"), sempre voluptuosa, luxuriante morena de olhos claros, despida a rigor por véus e transparências. Foi Scherazade, Calamity Jane, Sephora, a mulher de Moisés e Maria Madalena. Fez terror cómico na televisão no clássico "The Munsters", criou no palco o "standard" "I'm Still Here" em "Follies" de Stephen Sondheim. Para quem queria uma integral, três filmes pode parecer pouco, mas que filmes ... "Salome - Where She Danced" (1945) tem que se ver para se acreditar. "A Canção de Scherazade" (1947), incrível "biopic" de Rimsky-Korsakov, não desmerece. A fasquia sobe com "Gigantes em Fúria" de Walsh, história de espiões, contrabandistas e invasões napoleónicas, ao lado de Rock Hudson.Um ciclo a não perder que bem poderia ter sequelas, que completassem a realeza, agora apenas aflorada.

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