Conversa com vista para... Jana Raposo de Magalhães

Há pessoas, do grupo dos grandes, que conhecemos na adolescência e que nos parecem adultos à nossa escala, à escala do grupo dos pequenos. Guardamos delas uma imagem dominante feita de sinais que apontam para alguma leveza e frescura no modo como se relacionavam connosco e com os que à sua volta giravam. Tratando-se de homens, são como que os nossos "desengravatados", mesmo que o fato e gravata lhes fosse e vá a preceito. O Jana é um desses meus desengravatados. Senhor de altíssimas responsabilidades no mundo das finanças e da banca, o que nesse tempo em Moçambique, como em todo os países de então e de agora, significava ter muito, mas mesmo muito poder, o Jana era sobretudo um cultor de boémia, de olho escuro sempre a piscar para damas e donzelas, e com todas as sobras do seu tempo esticadas, até ao infinito das possibilidades, para organizar comezainas, provas de vinho, caçadas de alto risco, corridas de toiros, tentas divertidíssimas, fadistices, tertúlias artísticas e o mais que terei "pudor de contar seja a quem for". A par de um retrato de grande argúcia e competência nas lides financeiras, circulavam míticas histórias sobre o seu jeito de desconvencionalizar os ritos institucionais, de saber dar a volta às malhas dos protocolos, de inventar modelos de gestão empresarial que, no mínimo, soavam a iconoclastia para a moral do regime que então servia. Para que se perceba o que estou a dizer, saibam que em finais dos anos 60, já ao serviço de António Champallimaud, mandou abrir no bairro da Polana, em Lourenço Marques, uma agência do Banco Pinto & Sotto Mayor, com a particularidade de ter um quadro de pessoal, desde a gerência aos administrativos, exclusivamente ocupado por mulheres. A sigla do BPSM, no caso da dita agência, passou logo a ser referida como - Basta de P.... Senhor Magalhães! A um tal espírito criativo da clientela do Banco, o Senhor Magalhães achou sempre a maior das graças. Se dele quisesse dar uma definição, diria que é um leal servidor, tanto de seu amo, como de seu servo. Fiel e discreto, como se espera de um Senhor.

Maria João Seixas - Vamos a isto, Senhor Magalhães? Fazes-me a tua ficha?Jana Raposo de Magalhães - Tenho que dizer o nome? Acho que não vale a pena.MJS - Como quiseres. Eu, por exemplo, não sei se foste logo registado e baptizado como Jana.JRM - Mas quase ninguém sabe o meu nome...MJS - E não queres que se saiba? Faz parte do teu mistério?JRM - Não se trata disso. O meu pai teve sete filhos, sete varões, e não deixava que nenhum de nós fosse tratado por diminutivos. Um homem tem um nome e é esse que deve valer. Mas a mim, imagina, o pai pôs-me uma alcunha - Jana! E assim fiquei. O meu nome, já que queres saber, é João. Tenho pena de não ser João Emílio, como acontecia na família do meu pai ao longo de muitas gerações. Nasci em Alcobaça, tive um princípio de vida de que me lembro pouco... nasci enfezado e, com sete dias, tive o primeiro ataque de asma. Ia indo desta para melhor! Dada a debilidade da minha saúde, fui uma vítima às mãos da minha mãe, que me criou em algodão em rama. Aos 10/11 anos era um miúdo perfeitamente castrado, raquítico, fraco de pulmões, não podia jogar à bola, andar de bicicleta nem pensar... MJS - Bem te vingaste ao longo da vida desse princípio do teu tempo!JRM - Já lá vamos. A um dado momento, por volta de 1932, o meu avô materno, que era médico, impôs-se e trouxe-me a Lisboa, para ser visto pelo Dr. Leite Lage . Lembro-me das enormes barbas brancas desse extraordinário pediatra, que foi quem me salvou, porque explicou à minha mãe que ou eu passava a correr os riscos que as outras crianças corriam, fazendo exactamente o que todas faziam, ou me candidatava a ser raquítico a vida inteira. Também ganhei outra guerra, que foi a de ser o único dos meus irmãos a fazer a instrução primária numa escola pública. Coisa que era quase sacrílega para a minha mãe. E assim cresci numa meninice estragada, principalmente pelo meu pai, que era um homem muito bom, mas que teve o grande defeito de gostar mais de mim do que dos outros filhos. Felizmente que isso, com o tempo, se esbateu e o pai foi-se dando conta de que não tinha um, mas sete filhos e consegui sempre que não houvesse, por essa inclinação do nosso pai, problemas entre mim e os meus irmãos. Devo-lhes essa lição. Além de que tínhamos um acordo tácito - serviam-se de mim para obter do pai aquilo que não lhes seria de todo concedido se fossem eles a pedir. Eu próprio tive uma relação diferente com os meus irmãos - os três antes de mim, filhos da minha mãe, eram uns guerreiros, sempre a digladiarem-se, não creio ter muitas semelhanças com eles. Com os dois a seguir, sim. Sobretudo com o Fernando. Cedo se meteu por copofonias e boémias, como eu. E há ainda o mais velho de todos, o primeiro dos sete, um tipo engraçadíssimo, permanentemente metido em trapalhadas de negócios, filho só do meu pai e que foi perfilhado e baptizado pela minha mãe, mal soube que ele existia. Esse irmão é uma grande referência para mim e nunca esquecerei a dedicação que votou à nossa mãe. Talvez maior do que a de qualquer dos seis filhos que teve.MJS - Sente-se que guardas uma memória boa da tua vida.JRM - Tudo me correu bem na vida. Não tenho mérito nenhum. As coisas foram acontecendo... A vida tem sido doce para mim. Sem problemas de maior. Não sei porquê, acho que toda a gente na vida me ajudou. E depois, sabes, o essencial é que criei grandes amigos, desde a escola primária, que conservo até hoje.MJS - Foi por esses primeiros amigos, conquistados na escola pública da tua infância, que te candidataste depois do 25 de Abril à Presidência da Câmara de Alcobaça?JRM - Não. Foi assim - quando regressei do Brasil, em 1979, fui viver para Alcobaça, para casa da minha mãe e fui trabalhar na Crisal. Encontro-me um dia com o Dr. Francisco Sá Carneiro (que conhecia bem porque ele dirigiu, durante uns tempos, o Contencioso do BPSM no Norte), que me disse estar a preparar as listas para as legislativas desse ano e que eu era um tipo certo para ele incluir pelo distrito de Leiria. Disse-lhe que nem pensar, que não era feito para tais lides e o assunto morreu ali. Passado pouco tempo, chego um dia a casa e a menina Olinda (que me viu nascer e que devia ter na altura perto de 80 anos !) disse-me: 'Oh menino, estão na sala uns senhores à sua espera.' Bom, uma delegação de cinco notáveis locais tinha vindo convidar-me para me candidatar à Presidência da Câmara de Alcobaça, já que desde o 25 de Abril as câmaras eram ganhas ou pelo PS ou pelo PCP e havia naquele momento uma boa oportunidade de se mudar esse rumo. 'Já percebi, o que vocês querem é o nome do meu pai! Eu, ou qualquer dos meus irmãos, represento um nome e é esse nome que vos poderá fazer ganhar a Câmara. Muito bem!' E foi assim que fui candidato pela AD em 1979. A campanha foi divertidíssima. Os comícios e as sessões de esclarecimento passavam-se à noite (na província é preciso esperar que a malta regresse dos campos!) e acabavam sempre à volta de uns copos de vinho e de umas chouriças assadas. Ganhámos!MJS - Com uma percentagem folgada?JRM - Sim, sim, inequívoca. A primeira admoestação que recebi do meu partido, do PSD (quando concorri era independente, mais tarde é que me filiei), foi logo na cerimónia de tomada de posse, já que fiz rasgados elogios ao anterior Presidente, do PS, o meu querido amigo Miguel Guerra. Que, durante a sessão, estava comovido que nem uma Madalena com o que ia ouvindo e que eram palavras sinceras que lhe dirigi e que, com toda a justiça, lhe diziam respeito. Depois, quis sempre que estivesse ao meu lado nas inaugurações das obras que tinham sido adjudicadas por ele. MJS - Durou quanto tempo essa tua aventura autárquica?JRM - Pouco, cerca de ano e meio. Quando morreu o António Champallimaud (filho), o pai António pediu-me para eu vir para Lisboa, ocupar-me dos assuntos dele. Foi um pretexto que aproveitei de imediato, porque não sou definitivamente feito para as cenas do poder político e não sabia como é que havia de me livrar da Câmara!! Sabes que muitas vezes não me entendi com os do meu partido, mas os representantes de todos os outros partidos estiveram sempre comigo nas votações!MJS - Voltando atrás, à tua meninice - deixaste Alcobaça a seguir à instrução primária e vieste para Lisboa, para o Liceu Camões, fazer o secundário. E depois?JRM - Depois fui para Agronomia. Onde andei quatro anos. Sem qualquer convicção. Andei a ver onde é que tinha mais amigos e onde é que me podia divertir mais. Entrei em 1940, um dos anos mais extraordinários da minha vida. O ano da Exposição do Mundo Português. Nem podes imaginar as borracheiras que vivemos numa esplanada que havia por ali, onde é hoje o Espelho de Água. Acabávamos, muitas vezes, dentro de água...MJS - Já corria whisky pelos copos?JRM - Muito pouco, naqueles tempos era mais a cerveja, o vinho, as aguardentes. Mas Agronomia era uma Faculdade com muita piada. Tivemos um professor extraordinário, de esquerda, o Prof. Mário de Azevedo Gomes, que nunca misturou as aulas com a política. Todos, sem excepção, o adorávamos. E foi lá que também conheci outro homem absolutamente fora de série, o Amílcar Cabral. Dois anos mais novo que eu. Sabia tudo de tudo. Andávamos sempre à volta dele a pedir-lhe explicações. E ele disfarçava: 'Lá estás tu, então não sabes isso?'. O Amílcar tinha aquele tipo de humildade que se envergonhava de saber mais do que nós todos juntos. Custou-me sempre a acreditar que aquele homem, de uma bondade e de uma cultura raríssimas, pudesse andar a chefiar um movimento armado. E que falta fez ao desenrolar do curso das coisas em África! Ele e o Mondlane, em Moçambique. Outro homem raro... Bom, a luta política, entre nós que andávamos em Agronomia nos anos 40, girava à volta da conquista da Associação Académica, que tinha um órgão mensal, importantíssimo - o "Agros". Havia a extrema-direita, comandada pelo Jorge Jardim, e a esquerda, chefiada pelo Ário de Azevedo.MJS - Para que lado pesava o teu coração?JRM - Para o lado do Jorge, naturalmente, de quem era amigo. E que ganhou, com grande facilidade de resto, quase todas as eleições para a Associação Académica.MJS - Consideras-te um homem de direita?JRM - Sou de direita. Não me entendo com a direita, mas isso é outra história. O princípio de autoridade e a disciplina são valores fundamentais.MJS - Dá-me lá o arco que liga a passagem por Agronomia com o resto da tua vida e com a banca.JRM - Enquanto fazia Agronomia, fazia também a tropa e, no 4º ano, já era oficial miliciano de Cavalaria2, ali na Ajuda, nos Lanceiros da Rainha. Foi um tempo estupendo, limitava-me a fazer o que gostava - às sete e meia formava o pelotão na Parada, tudo a cavalo, lá íamos nós para Monsanto brincar às "cavalhadas", saltar uns obstáculos, algumas valas, etc... às onze e meia regressava ao quartel com os meus "garbosos" soldados, apeava-me e, à tarde, enquanto os meus sargentos davam a instrução, eu ia para o quarto dormir e preparar-me para as aventuras da noite. O Comandante achava-me exemplar, vê lá bem, ele que lixava a vida a todos os outros oficiais milicianos. O truque era o seguinte - quando eu entrava no quartel, pelo raiar da manhã, mandava logo tocar a "sargentos do dia", os homens apresentavam-se, davam-me o relatório de tudo o que tinha acontecido durante a noite e eu reportava ao Comandante, como se eu próprio tivesse passado revista aos esquadrões todos: adoeceu um cavalo no esquadrão tal e foi preciso chamar o veterinário, fugiu um preso não sei d'onde, por aí fora. Com esta brincadeira sempre em dia, nunca o Comandante passou revista ao meu pelotão, o que foi uma sorte, porque não me encontraria por lá... Depois, deu-me para me querer casar. Queria casar e ter um filho. E, sobretudo, não queria ir para os Açores fazer a guerra dos ananases. Andavam a mobilizar toda a malta para os Açores.MJS - A guerra dos ananases?JRM - Pois, estávamos em 44, o fim da II Grande Guerra estava iminente e havia a ideia que o Hitler podia desembarcar nos Açores. Era preciso ir para lá, dizia o Salazar, de binóculos apontados para o Atlântico. E... ficar à coca. Isso é que não me apetecia nada.MJS - E então... casaste.JRM - Não sem dificuldades, porque nem do lado dos meus pais, nem dos meus sogros, a ideia de nos casarmos sem curso feito era do agrado. Fomos viver para Alcobaça. Para o casarão dos meus avós, na Quinta da Cova da Onça. E eu, por desígnio do meu pai, pus-me a aplicar os meus parcos conhecimentos universitários na lavoura das nossas terras. Ganhava dois contos. Não pagava renda, nem electricidade, água, gás, telefone, tinha lenha, carvão de coque para a chauffage, azeite e vinho, couves e batatas, patos, galinhas e coelhos, direito a matar dois porcos por ano, fruta, etc... Não era nada mau! Em 45 nasce o primeiro filho, varão, o José Emílio, e lá fomos andando. Devo dizer-te que nos primeiros anos da minha vida de casado fui até muito cumpridor de todos os meus deveres, sossegado, fiel. Depois é que as coisas se começaram a complicar. A mãe da minha primeira mulher é que me percebia e percebia "tudo". Era uma senhora adorável, com quem sempre me entendi muito bem, tão bem que os meus filhos chegaram a dizer-me que era com a avó que eu me devia ter casado. Um dia, quando a vim trazer a Lisboa depois de uma estada connosco em Alcobaça, começou a falar comigo sobre a dedicação fantástica, que ela mesmo tivera ocasião de observar, de uma tal rapariga da quinta, sempre disponível, sempre à minha volta. E rematou: 'Sabes, não tenho nada que te dar conselhos, mas não posso deixar de te dizer que tudo se pode fazer na vida, se for com jeito !!!'MJS - Se formos por aí, Jana, sei que me vão faltar contas para acompanhar esse rosário. Foste sempre um "solto", mas... com um grande sentido da família. Como é que praticaste o ser pai?JRM - Acho que fui um mau pai. Desorganizado. Enquanto eram aquelas lesmas pequeninas não lhes ligava nenhuma. Não os tratava mal, mas não lhes achava piada. A partir dos 8/9 anos, quando já iam comigo para o pomar, até à adega, faziam perguntas, ajudavam-me, aí sim. Nunca me importei se chumbavam ou passavam, nem me passou pela cabeça castigá-los. E até os libertava dos castigos da mãe. O fundamental era outra coisa.MJS - Que coisa?JRM - Educá-los. Transmitir-lhes o meu modo de ver o mundo, de tratar com os outros. E penso que lhes consegui passar alguma coisa. E que em cada um deles, dos cinco, ficou um bocadinho de mim. O nome disso talvez seja - amor.MJS - Conta-me agora o teu salto para a banca.JRM - O meu pai tinha um pequeno banco, chamado Banco Raposo de Magalhães. Passados cerca de quatro anos de estar na lavoura, quis que eu fosse rodado pelos gerentes das várias dependências. E de borla. Fiquei dois anos a passar por todos os serviços - parte comercial, estrangeiro, contabilidade... Fui seis meses para Leiria, depois para as Caldas, porque em Alcobaça, que era a sede do Banco, é que o meu pai não queria que estivesse a fazer aquela aprendizagem. Tenho boas memórias das Caldas. Havia imensos italianos, refugiados de guerra. Italianos e italianas, claro. Fartei-me de "ter" que fazer horas extraordinárias, à noite, na dependência das Caldas! Por volta de 1952, tinha eu 30 anos, o meu pai, para desenvolver a Crisal e as fábricas que tinha, precisou de realizar dinheiro e vendeu o Banco Raposo de Magalhães ao Banco Nacional Ultramarino. Ao negociar o preço, a um dado momento, pediu mais uns trocos, como indemnização pelos dois filhos (o Eduardo e eu) que iam ficar desempregados. Claro que do lado do BNU, a resposta não se fez tardar: 'Indemnização? Desempregados? Que ideia! Que rapazes tão simpáticos, vão mas é ficar a trabalhar connosco, ficam cá com a mobília!' O Presidente do Banco Raposo de Magalhães era o Dr. António Pedroso Pimenta, que também era Vice-Governador do BNU e que só ia a Alcobaça aos sábados. Tinha a sua vida em Lisboa mas, às sextas-feiras, pernoitava na Estalagem de Aljubarrota e almoçava no dia seguinte em casa dos meus pais onde eu, em regra, também estava. Um dia perguntou-me a idade, os filhos que tinha, quis saber o que é que eu pensava fazer da minha vida enfiado naquela terra e desafiou-me a vir para o Ultramarino em Lisboa. Viemos. No Ultramarino fui muito bem tratado e aprendi muito, em todos os sentidos e com excelentes mestres. Aquilo era um Banco de velhos - o Dr. Francisco Machado, teria 70 anos, o Teotónio Pereira e o Azeredo Perdigão para lá caminhavam, o Visconde da Merciana andava pelos 80... E eu, com trintas, já era Director. Três anos depois de para lá ter entrado. A seguir, em 1958, começou a minha aventura africana. A descoberta de uma paixão terrível, que se chama África e de que não tinha a menor suspeita que me pudesse acontecer. Sobretudo por Moçambique. Angola é outra coisa.MJS - Foste, em 1958, para Lourenço Marques como Administrador do BNU?JRM - Nunca fui Administrador do Banco. Quando fui para Moçambique, fui como Inspector. Depois, passei a Director-Geral e, mais tarde, presidi à Directoria, composta por cinco membros. O nosso poder de decisão era quase ilimitado e excedia largamente os poderes de qualquer Administrador em Lisboa.MJS - Havia gerentes africanos no BNU?JRM - Vários. Acho que havia um quando cheguei e dez anos depois, quando saí do BNU para o Banco Pinto Sotto Mayor, já havia vários.MJS - Em que ano é que foi inaugurado, com pompa e circunstância - asseguradas por ti! -, o grande edifício-sede do BNU, com a presença em Lourenço Marques do Almirante Américo Tomás?JRM - Em 1964, no dia 15 de Maio de 1964. Deu-nos cá uma trabalheira!!MJS - Não foi aí que, para escândalo de muitos, foste esperar o Chefe do Estado em mangas de camisa?JRM - Não. Não fui esperar o Presidente da República. Isso pode ter acontecido na noite em que chegou o Sarmento Rodrigues, ao iniciar as suas funções como Governador-Geral de Moçambique. E que grande Governador-Geral! Era um homem tão liberal quanto conservador e de uma isenção, feita de integridade, inteligência e coragem, absolutamente fora do comum. Tinha havido uma avaria na Central de Electricidade de Lourenço Marques. Estivemos três semanas sem luz. O Almeida Teixeira era Director da Sonefe. Veio ter comigo ao Banco e disse-me: 'Se me deres hoje oitenta mil contos, eu garanto-te que no dia da chegada do Governador-Geral a cidade estará iluminada!' Não olhei nem para a esquerda nem para a direita. Emprestei-lhe logo os oitenta mil. E não lhe podia emprestar sequer um tostão!MJS - Porquê?JRM - Porque a Sonefe estava falida. E o Estado nunca lhe tinha avalizado as dívidas. Até se dizia que Sonefe significava Sociedade de Negócios Felizes! Nenhuma dependência do Banco podia conceder crédito à Sonefe. Escrevi então uma carta para Lisboa, ao Conselho de Administração, explicando que, perante a situação de angústia que se vivia na cidade (havia brigadas organizadas, andávamos todos armados - já tinha estalado a guerra no Norte! - os pretos, coitaditos, para poderem circular tinham que apresentar uma espécie de salvo-conduto...) e ao abrigo das prerrogativas que me estavam atribuídas, tinha decidido, individualmente, autorizar aquela operação. Fiz isto para não entalar os outros membros da Directoria, caso o Conselho de Administração em Lisboa reagisse mal. A carta nunca teve resposta, sabendo eu que tinham dado a maior sorte à minha atitude. Chegaram mesmo a pensar demitir-me!...MJS - E a Sonefe pagou?JRM - Pagou.MJS - Foi então por essa ronda de trabalhos em que te empenhaste para ter a cidade com luz que foste esperar o Governador-Geral em mangas de camisa?JRM - Exactamente. Deitámos todos mãos à obra até ao momento da chegada do avião. Não houve tempo para mudas de roupa.MJS - O Império colonial português não era um rigoroso disparate na tua cabeça?JRM - Não. Disparate foi como tudo acabou. Tinha que mudar, sei, mas da forma como foi feito é que não. Olha os ingleses e os franceses como souberam continuar a controlar a economia das ex-colónias! Não podíamos abrir mão, como fizemos e continuamos a fazer, da língua, da cultura e da economia, da moeda.MJS - Não me parece que tivéssemos tido particulares talentos para criar um desenvolvimento económico, de raiz, nas nossas ex-colónias.JRM - Ai não!? Não estou nada de acordo contigo. MJS - Jana, está à vista.JRM - Está à vista uma ova! O que está à vista é o que eles fizeram depois de nós termos largado aquilo. Tu, em 1974, tinhas uma economia florescente em Angola e tinhas uma economia muito equilibrada em Moçambique.MJS - Com uma repartição da riqueza por alguns que, na sua esmagadora maioria, eram brancos e portugueses...JRM - Sabes, o grande mal foi a falta de um projecto de educação.MJS - Tanto lá, como cá.JRM - É verdade. Falei várias vezes com o Dr. Salazar. Sobretudo a propósito de Moçambique. Eu tinha três temas recorrentes para as conversas com o Presidente do Conselho: educação, saúde, habitação. O senhor nunca fazia restrições aos planos de investimento na saúde e na habitação. Quanto à educação, zero! E dizia-me: 'Lá vem você com essas coisas. Acha que os pretos que vivem nas palhotas precisam de saber ler o Diário de Notícias?'MJS - Que retrato fazes do Dr. Oliveira Salazar?JRM - Acho que era um homem frio, com um coração duro e maldoso. Mas tinha uma grande visão do Estado, era um grande estadista.MJS - Onde é que estavas no 25 de Abril?JRM - Em Angola, no Banco Pinto & Sotto Mayor.MJS - Foram tempos difíceis?JRM - Muito. Até saber que ia receber ordem de prisão, assinada por alguém do MFA. Fui avisado a tempo de poder fugir para o Brasil. Fico-me por aqui. Essa história vai um dia ter que ser contada.MJS - Estamos a acabar, Jana. Gostava muito que esta conversa acabasse de uma forma divertida. Fala-me das tuas façanhas nas reservas de caça onde, por vezes, espantavas toda a gente saltando do jipe para ir pegar búfalos de cernelha!...JRM - Era uma brincadeira fácil. Um animal selvagem nunca ataca o homem (com excepção dos felinos e das bestas dos crocodilos e das cobras), a não ser que esteja ferido ou para proteger as crias. À frente de uma manada de búfalos em corrida vão os machos mais fortes. Seguem-se-lhes as fêmeas e depois as crias. Claro que eu deixava passar os mais possantes e atirava-me a um dos últimos filhotes, que são assim como uma espécie de bezerros. Levava uns coices, ia ao chão e divertia-me imenso.MJS - Tens uma palavra de eleição?JRM - Amor. Estou casado há 25 anos com a minha segunda mulher, cerca de trinta anos mais nova do que eu, nunca lhe fui infiel, nunca a enganei e vivo em estado de paixão. Não achas que é de agradecer à vida esta felicidade que me reservou?

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