"Posso ter que sair de Moçambique"

Há um crescente "discurso da raça" em Moçambique. O que aconteceu no Zimbabwe pode ser "um rastilho". Enquanto membro da escassa minoria branca, o mais célebre nome da cultura moçambicana fala pela primeira vez no receio de vir a "ter que" abandonar o seu país. Quanto às cheias, "a Frelimo deu a volta por cima e saiu reforçada". Fragmentos de uma nação (ainda) por construir, trazidos por Mia Couto, que hoje em Lisboa lança o seu novo romance, "O Último Voo do Flamingo".

Quantos pretos vão ao lançamento de um livro de um branco? E vice-versa? Não é uma anedota, não é uma adivinha, é a aritmética muito elementar a que chegou em Moçambique o "discurso da raça", como o resume Mia Couto. Aconteceu-lhe no fim do mês passado, quando publicou em Maputo o seu novo romance, "O Último Voo do Flamingo" - que o escritor lança esta tarde, em Lisboa, numa edição da Caminho -, ver essas contas feitas na imprensa moçambicana."Seria impensável ainda há pouco tempo. Esta distinção branco/preto está cada vez mais presente. Há a ideia de que os moçambicanos brancos são protegidos, porque só assim se explica que vivam melhor do que os outros. Qual é a interpretação das pessoas? O Mia Couto deve ter um padrinho, conhecer alguém... No lançamento [moçambicano] do livro, o ministro da Cultura sugeriu que eu publico muito porque tenho condições, acesso a editoras, e que devia abrir essas condições aos outros. É um discurso partilhado pelos meus colegas: se publico na Suécia é porque tenho 'boa sorte', um antepassado que me protege, ou conhecimentos... não por razões literárias."Quando lhe perguntamos se encara a hipótese de sair de Moçambique, ele hesita. E depois responde, calmamente: "Não tenho medo, num sentido físico, mas está presente no meu quotidiano a possibilidade desse percalço. Quando desenho a minha vida, eu vivo e morro lá [em Moçambique], é lá que tenho os meus filhos. Não se põe a questão de voltar a Portugal, porque eu não sou de cá. Eu não voltaria: eu viria. Não me imagino a escrever sobre outra coisa que não a minha terra. Não quero sair. Mas posso ter que sair."Filho de portugueses que se estabeleceram na Cidade da Beira, Mia Couto, que nasceu e viveu sempre em Moçambique, pertence a uma escassa minoria, bem mais escassa do que se pensa: "Somos dois mil brancos, 400 famílias ao todo, a maior parte das quais em Maputo. E estamos em extinção, porque a maioria dos nossos filhos não vão casar entre si. Refiro-me a brancos moçambicanos." Ou seja, não contando com estrangeiros e recém-chegados."Este discurso da raça tem vindo a ser cada vez mais veiculado pelos jornais desde há uns dois anos, com o regresso dos portugueses que estavam na África do Sul e que, de facto, contam com benefícios especiais, bancários, de investimento, etc. Ao sair-se do período do socialismo, houve uma certa perda de soberania, a favor dos portugueses, sobretudo."O escritor distingue dois tipos de portugueses: "Os que regressaram da África do Sul com a ideia de que os moçambicanos eram um povo dócil e os que nunca lá estiveram, mas vêm pelas facilidades de investimento."Além destas vantagens financeiras, contribuirão para um mal-estar crescente - Mia Couto não se refere ao assunto, mas quem visite Moçambique poderá observá-los facilmente - os comportamentos de um neo-colonialismo primário, por parte de brancos recém-chegados.A explosão no Zimbabwe contra os fazendeiros brancos, avisa Mia Couto, "pode ser um rastilho": "Não foi visível em Moçambique nenhum movimento para condenar [o Presidente Robert] Mugabe, a maior parte dos comentários foram elogiosos. Preocupou-me o que aconteceu. Com outro governo que não este, em Moçambique é muito fácil mobilizar essa razão da raça. Porque isso existe, está latente. Se houver uma força política que queira fazer trampolim disso, fará."Neste governo, que considera "o mais competente que Moçambique teve", ainda observa a resistência ao "discurso da raça" suficiente para que o primeiro-ministro diga, como disse - também no lançamento moçambicano de "O Último Voo do Flamingo" - que Mia Couto "é um ensinador da moçambicanidade".O facto de considerar este governo "o mais competente", ressalva o escritor, não significa muito: "Competência não chega. Eles estão paralisados pelo jogo de dependência em relação ao exterior. Vivem em constante operação de maquilhagem para fora. A fatia que ficou para ser gerida é pequena."É aqui que entramos numa questão central em que Mia Couto tem insistido: a de Moçambique não ser ainda uma nação. "Esta ideia de vitimização, de que a Europa tem culpas históricas, e deve pagar a dívida, percorre todos os poderes em África. Esta irresponsabilização é óptima para as elites: nunca são sujeitos históricos, são sempre objectos. E contrói-se esta visão mítica de que a África era um paraíso e depois vieram os de fora, com a colonização, a escravatura, esquecendo as cumplicidades, as conivências internas que aconteceram. Reconstroem um passado para se desresponsabilizarem no presente."Mia Couto concorda que não será possível manter por muito tempo este discurso, que aproveita a memória viva do trauma colonial. "Mais uma geração ou duas e já não pega." E então? "Tem que haver um segundo movimento de libertação. Já há historiadores e antropólogos africanos que recolocam a questão: isto [construir verdadeiramente a nação] só pode ser feito por africanos. Mas em Moçambique esta reflexão é incipiente."Um exemplo de como o motor do poder moçambicano está nas mãos da ajuda externa é a situação do país, depois da catástrofe das cheias. "A Frelimo deu a volta por cima e saiu reforçada. O governo foi posto à prova. E comportou-se bem, do ponto de vista do que conseguiu dos doadores, 450 milhões de dólares, sem contrapartidas como fiscalizações ou auditorias. Ganhou esse crédito político."Agora, relata o escritor, "Moçambique voltou à normalidade como se não tivesse acontecido quase nada": "É saudável. Primeiro houve um cansaço, um sentimento de derrota, de ter que começar tudo outra vez. Mas depois o capital de simpatia jogou a favor de Moçambique. Houve uma certa sabedoria de transformar o positivo em negativo."Mia Couto - que foi apanhado pela subida das águas quando regressava por estrada da África do Sul para Maputo -, sublinha que "o governo moçambicano não podia ter feito nada mesmo que quisesse", porque "helicópteros, não havia, e barcos, a marinha tinha dois de borracha, furados". Conclusão: "A tragédia não foi maior por causa da África do Sul. Aqueles helicópteros salvaram 10 mil pessoas."Entre as interpretações míticas e mágicas - ou puramente estratégicas: "a Renamo afirmou que o que magoou os deuses e causou o desequilíbrio foi a má fé da Frelimo na contagem dos votos nas eleições" -, Mia Couto destaca o papel "unificador" do sofrimento: "Houve imensos movimentos de solidariedade em Maputo, onde 80 por cento das pessoas têm familiares na zona de Gaza [a mais afectada pelas cheias]. Escuteiros, organizações cívicas, a comunidade muçulmana. E até em aldeias de Cabo Delgado [província do extremo norte de Moçambique], que não têm nada, as pessoas se quotizaram para enviar ajudas. Moçambique é um país que se constrói pelo sofrimento, desde a colonização à guerra civil. Há uma história de quando eu passei de simpatizante a militante da Frelimo: tínhamos que fazer uma prova, e a prova chamava-se 'a narração do sofrimento'."Em "O Último Voo do Flamingo" (ver próximo suplemento Leituras) o protagonista tem uma premonição apocalíptica da subida das águas. Acabará por ser outro, o fim. Mas a dúvida dos que estão vivos mantém-se: virá um novo flamingo, depois do último ter voado?

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