A leveza de uma rolha de cortiça no museu

A antiga "Fábrica do Inglês", uma unidade industrial do século passado, em Silves, foi transformada num espaço cultural e de animação turística. A criação de um museu por uma empresa privada, num investimento de dois milhões de contos, permitiu resgatar da ferrugem as velhas máquinas da pré-história da era da indústria corticeira. Agora, a par dos espectáculos de raiz andaluz, podem ver-se também as voltas que a cortiça dá até se transformar em rolha.

"Sabem de onde vem a cortiça?" A pergunta, dirigida a um grupo de crianças de Albufeira, por Manuel Ramos, director do Museu da Cortiça, na "Fábrica do Ingês", em Silves, obteve de resposta um simples encolher de ombros. Mas não são apenas os mais novos a ignorar de onde é extraída a matéria-prima para as rolhas que dão a volta ao mundo, nas bocas das bocas garrafas de champanhe ou do vinho do Porto. A "Fábrica do Inglês", designação que deriva do facto da unidade fabril ter sido gerida durante largos anos por Victor Sadler - "o senhor inglês", como era conhecido entre os operários -, é um dos novos espaços de cultura e animação do Algarve. Do passado, conservou-se o espólio de uma fábrica que funcionou do final do século passado até há poucos anos - entre 1894 e 1997 - e marcou uma época no sector corticeiro A partir de Silves, os ingleses exportaram para todo o mundo as rolhas de cortiça, da qual eram os principais consumidores a nível mundial. Agora, no tempo da indústria turística, a empresa de distribuição Alisuper pretende divulgar a riqueza cultural de Silves e assim atrair meio mundo à região. A originalidade deste projecto, onde foram investidos cerca de dois milhões de contos pela iniciativa privada, reside no facto de pretender atrair os turistas, não apenas pelo sol e praia, mas também pela divulgação da cultura. Assim, em tempo recorde, cerca de um ano, foram recuperados os velhos edifícios da fábrica para serem transformados em restaurantes e cervejarias mas, ao mesmo tempo, os investigadores, peça a peça, máquina a máquina, ergueram o Museu da Cortiça, o ex-libris deste parque de animação. O espaço museológico não reflecte apenas a parte material da história da cortiça, mas também dá um importante contributo para as ciências sociais, através do centro de documentação, com abundante informação sobre a influência dos ingleses na região e as lutas sindicais, nos anos quentes do salazarismo. A descoberta do arquivo histórico - a par da recuperação das máquinas e processos de fabrico - foi um dos trabalhos mais difíceis, dado o volume de documentos disponíveis. Por isso, no campo da investigação documental, a tarefa ainda não está concluída, mas já foram encontradas alguns dos elos que formavam a pirâmide da estrutura social do meio. A influência das ideias políticas revolucionárias no seio do operariado encontra-se registada em livros da gerência da fábrica, com alguns detalhes como, por exemplo, o facto dos corticeiros baptizarem os filhos, como nomes ligados à revolução russa - Marx e Lenine, numa época em que Silves era conhecida pela "terra vermelha", numa alusão às ideias revolucionárias que fervilhavam. Na passada semana, o PÚBLICO acompanhou uma visita de um grupo de crianças do infantário Barquinho Dourado, de Albufeira, ouvindo a explicação das voltas que a cortiça dá até sair uma rolha. Ao entrarem no museu, as crianças, com idades compreendidas entre os três e os seis anos, pareciam estar a viajar no espaço, por se tratar de um ambiente que lhes era estranho. É o próprio director do museu que faz de guia: a "aula" começa com a explicação de que a cortiça é a "pele do sobreiro", tirada de nove em nove anos, mas para que uma árvore atinja a fase da produção são precisos 30 ou 40 anos, "a idade dos vossos pais", enfatiza Manuel Ramos. Faz-se silêncio, e alguns olhares começam a percorrer as parede da casa, mirando as fotografias a preto e branco, como se estivessem a desfolhar páginas da história. Uma das educadores que acompanha o grupo adverte o director do museu: "Talvez eles sejam muito crianças, ainda não percebem." Manuel Ramos, professor de história, faz que não entende a advertência, e continua entusiasmado com a sua dissertação. Ao aproximarem-se das máquinas, as crianças ficam extasiadas. Chega o senhor Diamantino, um antigo operário, e passa-se da teoria à prática. Agarra num bocado de cortiça, e em breves minutos, saltam as rolhas. Tudo parece muito fácil, mas, na verdade, há um toque de arte em todos os seus movimentos, apurados por muitos anos de profissão.. O director do Museu da Cortiça procura que a conversa não se torne enfadonha e consegue motivar o interesse das crianças. Nas apresentações, não segue o guia clássico, debitando a história da fábrica e da sua importância no meio, preferindo falar do valor da cortiça, quando as garrafas de refrigerantes ainda não eram vedadas com caricas. Do historial da fábrica, ficou a referência de que, no início, a empresa se chamava Avern, Sons & Barris, e tinha sede em Londres. De resto, neste último século, chegou a ter 104 fábricas e fabricos de cortiça, empregando quase metade do número de trabalhadores que, a nível nacional, se dedicavam a este sector. Hoje, restam apenas duas fábricas.Das relações entre o patronato inglês e operariado português existem documentos que são reveladores da assimilação dos usos e costumes. Os corticeiros, embora não dispensassem o seu copo de tinto, a determinada altura, de tanto verem o senhor Sadler tomar religiosamente o seu chá das cinco, resolveram imitá-lo. Assim, começaram a apanhar as folhas de tília - árvore que ainda existe no quintal - para provar a bebida do patrão. A ousadia custou alguns castigos. No projecto de recuperação da fábrica, em homenagem a essa velha tradição britânica, foi aberta uma casa de chá. Todos os edifícios que faziam parte da unidade fabril foram recuperados segundo a traça original, não caindo em tentações de falsos modernismos. Manuel Ramos diz que "houve um entendimento fácil com a arquitecta, e foi possível conciliar a preservação do património com a sua utilização turística". Jorge Custódio, especialista em arqueologia industrial, foi outro dos investigadores que esteve ligado a este projecto, virado para o turismo, mas tirando partido da importância cultural da cidade de Silves. Nesse sentido, já este Verão vai surgir a "Rota d'al Andaluz", um conjunto de espectáculo destinados a recriar o ambiente das Mil e Uma Noites, com danças do ventre, sevilhanas, encantadores de serpentes, e outras encenações ligadas aos contos tradicionais algarvios.

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