Apoteose e exaustão de Iannis Xenakis

Arrancou em beleza o 11ª festival Cantigas do Maio. As mulheres levam, para já, vantagem. Amélia Muge, Roza Zaragoza e Nahawa Doumbia passearam o Seixal pelo mundo. Mas, bem ouvidas as coisas, foram os 30 bretões - na maioria homens - da Bagad Kemper, que se fizeram ouvir mais alto. É que dezenas de bombardas tocadas em uníssono não são para brincadeiras...

Já que o tema dos Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea deste ano é Música e Matemática, com especial incidência na homenagem a Iannis Xenakis, pode dizer-se, parafraseando um termo que também em música tem aplicações (e mesmo que na contabilidade da sucessões dos concertos a sua invocação não esteja algebricamente correcta), que o número de ouro atingiu-se no concerto do passado sábado. Após os dois concertos iniciais do ST-X Ensemble Xenakis USA, a formação reuniu-se com a Orquestra Gulbenkian, no que era um dos destaques maiores destes Encontros, e revelou-se uma experiência memorável, culminando na aguardada estreia em Portugal de uma obra decisiva, "Jonchaies".Ao contrário do que usualmente sucede em concertos de música contemporânea, em que o destaque é criticamente colocado nas obras, sobretudo quando são apresentadas em estreia, e os intérpretes são remetidos quase para nota de rodapé, a experiência foi de tal modo que me permito começar por referir os notáveis membros do Ensemble e o maestro Charles Zacharie Bornstein."Pode-se interpretar Xenakis?", como tantas vezes se tem perguntado, dada a poética do autor e a sua noção de objectividade, a propósito de Stravinski? O grau de formalização implica um minucioso trabalho de decifração das partituras. Mas se estamos em concerto e há "escuta", e activa, é também porque há uma "interpretação", que pode ser extremamente rigorosa na observação das indicações da partitura (e Bornstein foi notavelmente escrupuloso, com uma espantosa economia gestual), mas não renega a expressividade da comunicação musical. A excelência de alguns dos membros do Ensemble foi bem patente (citem-se Conrad Harris em violino, Justin Rubin em piano ou Dominic Donato em percursão), mas o prodigioso ordenador foi Bornstein. No concerto de sábado, com os elementos do Ensemble dispostos em postos chaves e também com muitos e jovens reforços, a Orquestra Gulbenkian surgiu galvanizada pelo fulgor do maestro. Evidentemente, "Joanchaies" foi o pináculo, a apoteose. Embora Xenakis tenha composto importante obras para instrumentos a solos ou grupos de câmara, com destaque para piano, metais e percussão, a sua estética revela-se privilegiadamente nas grandes formações, permitindo a expansão e rarefacção das massas sonoras e a exploração das suas probabilidades. Mesmo atendendo que alguns exegetas propõem periodizações mais detalhadas, é evidente o laço que vai dos inícios, com "Metastasis" (54) e "Pithoprakta" (56), aos esplendores de "Cendrées" (73) e "Jonchaies" (77).E depois disso? - era questão que já tinha formulado num texto preliminar de apresentação ("Artes" de 19/5). Receio que as reservas então enunciadas, ainda que com a prudência imposta pelo desconhecimento de muitas obras, tenham tido matéria de confirmação. A ênfase na mecanicidade, a transformação em fórmula de "passe-partout" das nuvens de "glissandi" e "clusters", as estruturas concêntricas e o estatismo, em que os blocos sonoros se sucedem em justaposição, de resto com relações intervalares previsíveis, confirmaram-se na maioria das obras mais recentes. É a exaustão, e não é fortuito que um pensamento tão fértil não deixe contudo descendência musical.Ainda bem, por exemplo, que no concerto de sábado, "Tracées" (87) tenha sida a primeira obra, já que rememorada depois da audição de "Jonchaies" se verifica quanto neste pensamento tão rigorosamente matemático-formal se instaurou a arbitrariedade e repetição. Mas há que ressalvar duas obras belíssimas, "Dikhtas" (79), para violino e piano, em que as dualidades e jogos estratégicos tão praticadas por Xenakis atingem um grau de concentração de meios máxima, e "N'Shima" (77), em que o texto hebraico ("para duas vozes de camponesas amplificadas") retoma as obras sobre textos clássicos gregos ("Oresteia", "Medeia" ou "À Colonne"), com uma sublime conexão entre a prosódia e a acentuação vocais, o conjunto instrumental e as resultantes amplificadas.E porque se trata da derradeira obra, há que citar "O-Mega" (97), em que a percussão, envolvida por um conjunto de sopros e cordas, afirma uma última vez a vitalidade e o brutalismo, reiterando-os como elementos constitutivos da obra de Iannis Xenakis.

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