Há uma supremacia negra no desporto?

Por que é que os atletas negros dominam o desporto? Por que é que se tem tanto medo de falar disso? "Taboo", um livro de Jon Entine, faz estas duas perguntas. Incómodo, não colheu a mais calorosa das recepções, sobretudo entre os activistas mais radicais, por se atrever a usar a palavra "natural" e abrir caminho à explicação genética para a supremacia dos atletas negros. O objectivo de Entine é provocar a discussão. Mas até onde estão os cientistas dispostos a concordar com as suas ideias? Pouco, observa o geneticista português Carolino Monteiro.

"Os negros, em muitos aspectos físicos, são mais bem feitos", afirmou há 12 anos Carl Lewis, um dos melhores "sprinters" de todos os tempos. E depois encolhia os ombros para o entrevistador, como dizendo: "Mas alguém tem dúvidas disso?". Este é o mesmo Carl Lewis que treinava oito horas por semana - por semana, e não por dia - ao preparar-se para os Jogos Olímpicos de 1984, onde arrebatou quatro medalhas de ouro. A crença de Lewis de que faz parte de uma raça à parte pode ser vista como afirmação do orgulho negro ou então, muito simplesmente, como expressão de um estereótipo racista de tal forma poderoso que até os indivíduos negros bem sucedidos o recitam de cor.A simples ousadia de se mencionar uma eventual superioridade atlética dos indivíduos negros provoca reacções bastante inóspitas. "Tolice", "obsessão branca" e "despudorado frenesi racista" são as expressões com que muitos afro-americanos, para usar o termo politicamente correcto, caracterizam o interesse por este assunto. E por detrás desse interesse, defendem os mais activistas, existem no outro prato da balança estereótipos de uma inferioridade intelectual e moral dos indivíduos negros. Sob este ponto de vista, o sucesso dos atletas negros nunca será um elogio, mas antes uma afirmação clara de preconceito racista ou, como escreveu uma vez Bob Herbert, reputado colunista do New York Times, "uma forma gentil de dizer preto". Foi nestas tumultuosas águas que o jornalista Jon Entine debruçou as suas atenções para escrever "Taboo", um livro onde se procura perceber por que é que os atletas negros dominam o desporto mundial e por que razão é tão difícil falar neste assunto. O tema não é estranho a Jon Entine, que em 1989 ganhou o galardão de Melhor Documentário Desportivo com um trabalho sobre os atletas negros. Com base nas mais recentes pesquisas científicas no campo da evolução e da genética - incluindo o revolucionário Projecto Genoma Humano - e graças a um aturado trabalho de documentação, Entine consegue demonstrar de forma bastante persuasiva como é que a biologia e a ancestralidade ganham um peso preponderante na extraordinária ascensão dos atletas negros.Quando fala do domínio dos atletas negros no desporto, refere-se sobretudo ao desporto norte-americano. Melhor: às modalidades mais populares nos Estados Unidos - basquetebol, basebol, futebol americano, atletismo -, em relação às quais se gerou o consenso de que os indivíduos negros são dominantes. A premissa da qual parte é pois questionável. "Ainda está por determinar se são atletas negros que dominam efectivamente o desporto mundial", aponta Carolino Monteiro, presidente da Sociedade Portuguesa de Genética Humana: "É aqui que reside a minha primeira dúvida: é verdade que são os indivíduos negros os melhores atletas?"Pois para Jon Entine - e também para a generalidade dos norte-americanos - esse é um ponto assente. E é mesmo sugerido que os indivíduos com ascendências africanas só não dominam ainda todas as modalidades desportivas no panorama mundial porque ainda não têm condições iguais para competir em todas elas. Aí, Tiger Woods, no golfe, e as irmãs Venus e Serena Williams, no ténis, aparecem como excepções: como se tivessem quebrado a regra cultural e racista que tem vindo a impedir os atletas negros de se afirmarem também nessas modalidades.Romper-se-ia tal consenso, com efeito, ao enumerar as dezenas de modalidades desportivas em que não existe um domínio dos atletas negros: na natação, no ciclismo, no hóquei, no andebol, no futebol, e até em algumas das especialidades do atletismo como o lançamento do dardo, do peso e do disco...Mas também não há como refutar a evidência apontada por Jon Entine. Evidência a que estamos de tal forma habituados que é fácil esquecermos-nos dela: os atletas negros dominam uma boa parte do universo desportivo, convenhamos até que praticamente todo o universo desportivo norte-americano. Com uma fatia de apenas 13 por cento no total da população dos Estados Unidos, os negros estão representados em 80 por cento na Liga Norte-Americana de Basquetebol Profissional (NBA), em 70 por cento na Liga Norte-Americana de Basquetebol Feminino (WNBA) e em 65 por cento na Liga Profissional de Futebol Americano (NFL).Mais. Nas pistas do atletismo, por muitos consideradas o "laboratório puro" das capacidades atléticas, os corredores de ascendência africana são detentores de todos os recordes mundiais masculinos e individuais de todas as distâncias: desde os 100 metros (em que nenhum atleta que não seja negro conquista o recorde do mundo desde 1960) à maratona. No futebol americano, as posições que requerem a maior combinação de velocidade e força são quase inteiramente ocupadas por jogadores negros. No basquetebol, a modalidade que exige a mais poderosa combinação de capacidade de elevação, explosões de força e agilidade, quase todos os que integram os cinco iniciais e praticamente todas as grande estrelas da modalidade são negros. Até no basebol os atletas negros estão desproporcionadamente representados, embora não à mesma escala do que acontece no futebol americano e no basquetebol, modalidades que, por definição, são atleticamente mais exigentes. Nada disto é novidade para os atentos seguidores do desporto norte-americano e do atletismo mundial. E não é novidade nenhuma há mais de 30 anos. É preciso recuar até ao início dos anos 60, ou mais ainda, para se encontrar uma época em que os atletas negros não dominavam completamente o basquetebol e, numa escala menor, o futebol americano. Os dias em que as equipas da NFL tinham como titulares, por rotina, dois jogadores brancos nas posições de "wide receiver" parecem mesmo pertencer ao período paleolítico. E nos 100 metros olímpicos já não há sequer um único finalista masculino de pele branca há várias décadas, exceptuando os Jogos de 1980, em que muitos países, incluindo os Estados Unidos, boicotaram o evento de Moscovo.O fenómeno é fascinante. Mas o que fascina ainda mais é que todos - com excepção única dos próprios atletas - parecem recear abordar este assunto publicamente. "Há de facto uma ausência de discussão em volta do tema rácico", confirma Carolino Monteiro. E adianta: "Tenho dificuldade em utilizar a palavra 'raça' por razões genéticas". É que, sob um olhar científico, raça é quase um conceito vazio, pelo menos da forma como está culturalmente definido: "com três mil milhões de genes nos seres humanos, não podemos falar apenas na cor da pele e nas características faciais para diferenciar um determinado grupo", junta ainda aquele geneticista.Não é de admirar portanto que a simples afirmação de que os indivíduos negros são melhores atletas conduza a uma questão ainda demasiado traumática para as delicadas sensibilidades raciais, não só dos Estados Unidos, mas de muitos outros países: por que é que eles são melhores?A resposta politicamente correcta é a de que os atletas negros dominam o desporto devido a uma desvantagem ambiental e não - melhor, nunca! - graças a uma vantagem biológica. E sob este ponto de vista, o flagrante êxito dos atletas negros é o efeito directo do racismo: para as populações negras, o desporto seria praticamente a única via para conseguir sair do "ghetto". Daí a sua extraordinária motivação para serem bem-sucedidos.Há obviamente muito de verdade nesta resposta. Antes de se pôr de parte a ideia de que o meio-ambiente pode por si só produzir tantos atletas negros de nível mundial, convém não esquecer que os factores culturais e ambientais são facilmente subestimados, até pelos próprios atletas. Não ocorre a ninguém sequer sugerir que os judeus ou os asiáticos são de alguma forma geneticamente dotados para se tornarem músicos eruditos de extraordinária excelência e, no entanto, são eles que também desproporcionadamente estão representados nessa área de criação artística. Segundo esta mesma lógica, também não aparece ninguém a sugerir que os negros são geneticamente dotados para uma virtuosa improvisação musical e, porém, são eles quem domina claramente o jazz, da mesma forma que dominam o basquetebol e as corridas de atletismo.Para além destas evidências, existem boas e sensatas razões para se acreditar que o domínio dos atletas negros não se deve a factores fisiológicos. A ciência tem uma longa e mal-afamada história de fazer falsas extrapolações a partir de dados inconclusivos, extrapolações essas que muitas vezes apenas papaguearam os preconceitos da época. No caso dos indivíduos negros, que os brancos perniciosamente associaram a uma "animalidade bruta" e a uma noção de "selvagem ingénuo" desde que com eles se cruzaram pela primeira vez, tais preconceitos podem até ter submergido à força das teorias e movimentos igualitários das sociedades modernas mas também podem ser muito facilmente acordados. "Antes de se ser cientista é-se ser humano, e inerente à condição humana transportam-se tabus dados pelos exterior", concorda Carolino Monteiro. Por isso, certamente que com o fenómeno do domínio dos atletas negros em mãos, as explicações da ciência devem ser olhadas com algum cepticismo.Só que bater o recorde mundial dos 100 metros é um feito bem mais quantificável do que "explodir" numa virtuosa execução de um concerto de Rachmaninoff. E, à medida que o domínio dos atletas negros aumenta, assim como engrandece o nosso conhecimento na genética, na antropologia e na fisiologia, vai ficando cada vez mais difícil explicar a superioridade atlética dos indivíduos negros com base unicamente e tão só nos factores ambientais.A resposta, então, parece estar no meio-termo. Se por um lado a teoria dos factores ambientais deterministas já encontra dificuldades em vingar, também a tese do determinismo genético-biológico continua a carecer de bases suficientemente bem sustentadas. Por enquanto, a opção mais sensata - não a mais ousada nem tão pouco a mais cautelosa - aponta para a correlação dos dois factores. "Podemos falar na existência de uma carga ambiental própria para uma carga genética própria, mas não podemos afirmar que existam diferenças consoante se trate de negróides, caucasóides ou outras populações", afirma o geneticista Carolino Monteiro. E adianta: "Para existir um bom atleta têm que coexistir várias peças de puzzle. É claro que a genética pode entrar aqui, com a influência de vários genes que vão contribuir para um determinado tipo de funcionamento de uma célula: genes envolvidos no metabolismo do oxigénio, genes envolvidos no desenvolvimento da célula muscular... Seguramente que a combinação de vários genes terá um papel importante, mas não me parece que possamos falar num determinismo genético negróide para o desporto".Quer isto dizer que apesar de se reconhecer um papel importante à genética - embora a ciência continue ainda em dificuldades para isolar quais exactamente são os genes necessários na "construção" de uma performance atlética de topo - não se deve nem pode menosprezar a influência dos factores ambienciais. Que mais não seja porque são eles que permitem que os factores genéticos se expressem. "Seguramente que não vamos encontrar uma enormidade de talentos desportivos, à escala dos melhores do mundo, em Angola, na Guiné ou na Serra Leoa. Como é que se podem encontrar potenciais talentos desportivos em sociedades em que é difícil até assegurar as condições mínimas de vida?", questiona o geneticista, para sustentar que é o resultado do património genético a par da carga ambiencial que pode, eventualmente, marcar a diferença.Não exclui, Carolino Monteiro, a possibilidade de "ao longo da evolução humana determinados genes terem favorecido algumas performances de sobrevivência". O que significa que tem haver uma causa exterior a alterar o equilíbrio e, portanto, a expressar a diferença.Embora os humanos médios partilhem 99,8 por cento do mesmo material genético, parece ser bem mais importante para esta questão não a quantidade de genes que são diferentes mas quais os genes que são diferentes. "Não é a percentagem de genes diferentes que verdadeiramente importa mas sim o impacto que esses genes podem ter na fisiologia e, se se quiser, no comportamento humano", defende Jon Entine. Com efeito, se fosse a quantidade de genes iguais que contasse, não estaria a espécie humana assim tão longínqua, por exemplo, dos cães, que partilham cerca de 95 por cento do genoma humano, ou até dos pequeninos bichos-de-conta, que têm 75 por cento dos mesmo genes que existem nos seres humanos.Os factores ambientais e culturais podem, então, aumentar ou diminuir quaisquer eventuais variações que existam inerentes à evolução humana. Variações que podem parecer diminutas ao nível em que se integra a generalidade das pessoas, mas que constituem aquilo de que os campeões são feitos quando se fala de uma elite. As diferenças físicas e fisiológicas, moldadas ao longo de muitos milhares de anos de evolução, são de facto infinitesimais. Mas são também cruciais em competições desportivas em que uma fracção de segundo separa o medalhado de ouro dos outros. Para pessoas como Einstein e Mozart - e, para o mesmo efeito, de Mark McGwire, de Jim Brown, de Carl Lewis e de Péle - os genes contam imenso. A biologia pode ter os seus limites, mas não pode estar ausente da discussão. Sob pena de se continuar a tentar explicar as fantásticas performances desportivas dos atletas negros com as diferenças de oportunidades que a sociedade lhes oferece. E essa é a forma menos provável de se fazer o culto da biodiversidade. Afinal, ainda que seja melhor ser igual em vez de diferente, é bem melhor ser humanamente diverso.

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