Torne-se perito

Sagan e a bomba na Lua

Tal como a União Soviética, também os Estados Unidos pensaram em fazer um grande golpe de relações públicas, demonstrando o seu poderio através da explosão de uma bomba nuclear na Lua, na década de 50. O mais inédito é que este segredo da Guerra Fria foi revelado através de uma biografia de Carl Sagan, um cientista que se destacou como opositor das armas nucleares.

O primeiro contacto do homem com outro corpo celeste podia bem ter sido uma bomba nuclear, detonada na Lua. Os Estados Unidos planearam fazê-lo, em 1958, para não ficar atrás dos soviéticos que, pela mesma altura, andavam a considerar o mesmíssimo projecto. Mas a história dos planos norte-americanos tem ainda uma característica adicional: Carl Sagan, então um jovem astrónomo à procura de emprego, esteve envolvido no programa, com a responsabilidade de calcular o impacte da explosão nuclear na Lua. E, quatro anos passados após a sua morte, o antigo chefe de Sagan vem afirmar publicamente que o cientista que maior notoriedade ganhou como divulgador de ciência e também como activista contra as armas nucleares quebrou a segurança nacional, ao revelar o projecto secreto em que esteve envolvido nessa data. "É um pequeno passo para o homem, um salto de gigante para a humanidade." A bela frase dita por Neil Armstrong, quando se preparava para deixar a primeira pegada humana na Lua, podia muito bem nunca ter sido dita. Ou, pelo menos, não soar tão bem como soa ainda hoje na nossa memória, quase 31 passados sobre a aterragem do veículo lunar Eagle, na madrugada de 19 para 20 de Julho de 1969. No ano passado, quando se preparavam as comemorações dos 30 anos da chegada a Lua, Boris Chertok, então com 82 anos, revelou numa entrevista à agência Reuters os planos soviéticos: "Em 1958, havia planos para mandar uma bomba atómica para a Lua, para que a explosão fosse fotografada em todo o mundo". Mas a ideia acabou por ser abandonada, segundo Chertok - que durante 20 anos foi adjunto de Serguei Korolev, o pai do programa espacial soviético -, porque os físicos concluíram que "a falta de atmosfera na Lua tornaria a explosão tão fugaz que nem poderia ser filmada".Mas, em pleno clima de Guerra Fria, do outro lado da Cortina de Ferro, os Estados Unidos já se estavam a sentir bastante vexados com a vitória de relações públicas para a União Soviética que foi o lançamento do primeiro satélite artificial da história humana - o Sputnik. O pequeno satélite transportava apenas uns transmissores, para emitir sinais sonoros na frequência dos 20 megahertz mas, para desespero dos norte-americanos, os "bip-bip" que emitia podiam ser captados por estações de rádio em todo o mundo. Numa guerra de propaganda como esta, a Lua era um alvo óbvio, tanto para soviéticos como para norte-americanos. "Era bem claro que o objectivo principal da detonação seria criar um acontecimento de relações públicas. Os Estados Unidos estavam a ficar para trás na corrida espacial, pelo que a Força Aérea queria uma nuvem em forma de cogumelo tão grande que pudesse ser vista da Terra", disse ao semanário britânico "The Observer" Leonard Reiffel, que hoje tem 73 anos e em 1958 liderou o projecto, desenvolvido na Armour Research Foundation (uma instituição que entretanto mudou de nome, e passou a chamar-se Instituto de Investigação Tecnológica do Illinois).A bomba a usar neste projecto ultra-secreto - baptizado com o nome A119 - deveria ser pelo menos tão potente como a que foi lançada pelos norte-americanos sobre a cidade japonesa de Hiroxima no final da Segunda Guerra Mundial."Tornei claro na altura que destruir o ambiente intocado da Lua teria custos elevados para a ciência, mas o que interessava à Força Aérea era saber como se a explosão nuclear se veria bem a partir da Terra", disse Reiffel, que surgiu pela primeira vez a contar a sua versão dos factos quando este episódio da Guerra Fria foi revelado, por alto, numa das duas biografias de Carl Sagan que sugiram o ano passado nas livrarias norte-americanas, três anos passados sobre a sua morte, vítima de uma pneumonia e de uma doença da medula óssea que o atormentava já há dois anos. Christopher Chyba, que é professor no Departamento de Geologia e Ambiente da Universidade de Stanford, na Califórnia, e uma das principais figuras do Instituto SETI (a sigla em inglês para Procura de Inteligência Extraterrestre), escreveu uma crítica aos dois livros, publicada na revista científica "Nature" de 28 de Outubro de 1999. Um dos livros chama-se "Carl Sagan: a Life in the Cosmos", e foi escrito por William Poundstone, que tem experiência na elaboração de biografias de cientistas. O outro, da autoria de Keay Davidson, jornalista do "San Francisco Examiner", chama-se "Carl Sagan:a Life". Ambas as obras vasculham partes da vida de Sagan que não condizem muito com uma certa imagem de herói que o astrofísico ganhou, como divulgador de ciência e defensor da desnuclearização, reconhece Chyba, que foi um amigo próximo de Sagan. Uma delas é o relatar que Sagan trabalhou neste megalómano projecto de fazer explodir uma bomba nuclear na Lua: a sua função foi precisamente a de fazer os cálculos matemáticos necessários para construir modelos para a forma como a nuvem de gás e poeira produzida pela detonação seria visível a partir da Terra. Foi Gerard Kuiper - um astrofísico nascido na Holanda mas naturalizado norte-americano -, que graças ao seu trabalho de investigação sobre o Sistema Solar é hoje considerado um dos pais da ciência planetária moderna quem recomendou a Reiffel para esse trabalho o então jovem Carl Sagan, acabadinho de sair da Universidade de Chicago. É um trabalho que não vemos bem Sagan fazer - embora ele tenha chegado a pensar que uma explosão nuclear poderia ser útil para detectar a existência de eventuais micro-organismos na Lua -, mas nada disto Chyba rebate. O problema, afirma na "Nature", é que Davidson faz uma série de "atribuições de motivação e acusações não sustentadas, que vão muito para além dos dados factuais", afirmando que Carl Sagan violou segredos de Estado ao mencionar este trabalho quando concorreu a uma bolsa de pós-licenciatura na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 1959. Sagan recebeu recomendações de vários futuros prémios Nobel, como Joshua Lederberg e Hermann Joseph Muller, mas terá escrito a Muller uma carta em que lhe manda parte do trabalho que realizou na Armour Research Foundation. "Mesmo documentos secretos podem ter partes ou títulos que não estão classificados como tal. Para fazer a acusação grave de que alguém relevou ilegalmente informação classificada é uma afirmação que tem de ser fundamentada de forma responsável", diz Chyba, em defesa de Sagan, adiantando que ele mostrou o mesmo manuscrito, nunca publicado, a cinco outros cientistas.Em defesa de Sagan, Chyba fala também do desprezo a que muitos outros cientistas o votavam, por se esforçar na divulgação da ciência para o grande público - recorda até como a Academia de Ciências norte-americana recusou ter Sagan como membro. Mas Leonard Reiffel também escreveu uma carta à "Nature", publicada a 4 de Maio, na qual conta a sua versão dos factos. "Até serem publicadas estas biografias, eu não sabia que Sagan tinha mandado documentos 'desclassificados' (por quem?) sobre o seu trabalho no projecto A119", afirma Reiffel. A autorização para tornar público este trabalho teria de ser dada pela Força Aérea. "Como seu chefe, na altura, qualquer pedido nesse sentido teria de passar por mim, e é muito pouco provável que, num período tenso como aquele, alguma vez se consentisse na sua divulgação", escreve Reiffel. "Felizmente, o projecto não foi para a frente. Mas, na minha opinião, Sagan colocou a segurança do Estado em perigo nessa altura", afirma claramente Reiffel. Mas a documentação relativa a este projecto ultra-secreto foi destruída em 1987.

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