Uma obra-prima em Aldeia Viçosa

É mesmo um Grão-Vasco o quadro "descoberto" em Aldeia Viçosa, povoado vizinho da Guarda. O exame de infravermelhos permitiu, segundo Vítor Serrão, reconhecer traços do mestre de Viseu, um dos mais importantes pintores do renascimento português. O PÚBLICO acompanhou a equipa do IPM e ficou a saber o que faz de uma obra quinhentista um Vasco Fernandes.

Santa Maria de Porco (hoje Aldeia Viçosa) é povoação beirã da serra de Soida, junto ao Mondego, onde a tradição diz que D. Dinis caçou o porco-bravo por altura do casamento com a Rainha Santa. Pertenceu ao termo de Celorico da Beira e incorporou-se depois no da Guarda. Auferiu de certa notoriedade na Idade Média (carta de Foral em 1238), mas foi caindo em inexorável periferismo, pelo que passa hoje despercebida das rotas de turismo cultural. No século XVI, porém, com a fixação de famílias nobres e um núcleo populacional estimado em 58 fogos (cadastro de 1527), a igreja era tão importante que podia dar a fazer um retábulo ao célebre pintor Vasco Fernandes. A ocasional identificação desta obra-prima do Património nacional é um verdadeiro acontecimento. Tem motivado, por isso, um inusitado interesse dos 'media' desde que o PÚBLICO (2-V-2000) revelou a sua existência. Sabia-se já que o templo possuía, entre talha e escultura barroca mais ou menos interessante, um "quadro quinhentista" (breves referências de Adriano Vasco Rodrigues, "Tesouros Artísticos de Portugal"; José Saramago, "Viagem a Portugal"; e Júlio Gil, "As Mais Belas Igrejas de Portugal"), mas a peça estava por identificar e ignorada da comunidade científica, ainda que estimada pela população da aldeia. A superior qualidade plástica, com características de estilo que a ligam ao repertório maduro do Grão Vasco, foi razão suficiente para se abrir um processo de estudo integrado com resultados científicos a revelar oportunamente. Num país como o nosso, onde quase tudo o que diz respeito a Património está por inventariar, fruir, proteger e estudar em termos científicos, penso muitas vezes que os historiadores de arte agem como uma espécie de "operários da memória" através da sua metodologia de trabalho aberta à globalidade, à dimensão micro-histórica, à contextualização do 'facto artístico', ao cruzamento de vertentes inter-disciplinares e, sempre, ao "diálogo fecundo" com as obras de arte - entendidas como tecido vivo de uma identidade comum. O "contributo social" da História da Arte é destacado na medida em que intervém com outros ramos da ciência para cimentar um processo de registo global que actua em si mesmo como resistência à des-memória galopante. É por isso que o desvendar de uma peça tão prodigiosa como esta surge como um bálsamo que encoraja uma postura militante e este constante esforço de salto no desconhecimento sobre o país profundo, tantas vezes alvo de incompreensão e de bitolas menorizantes. A realidade é que esta peça da directa oficina do Grão Vasco, tão "pessoal" na sua construção, passou despercebida dos estudiosos, apesar de ter estado desde sempre ao culto. Trata-se de uma "Virgem, o Menino e Anjos Músicos", tema único no "corpus" do artista, a óleo sobre castanho (1400 x 1290 mm) e regular estado de conservação, mesmo apesar de ter sido deslocada e reemoldurada com a ampliação da capela-mor, no século XVIII. Segundo documentos que se divulgarão oportunamente, terá sido encomendada pelo chanceler Estêvão de Matos, que jaz nesta igreja, um promotor de justiça e correição da Guarda, criado e escudeiro de D. João III e "védor das obras do Cidade da Guarda". A pintura é da fase (1530-1540) em que o pintor recebia o estímulo dos valores humanísticos do Bispo D. Miguel da Silva, o seu italianizado mecenas. A tábua, de desenho exímio, é típica do repertório grão-vasquino ao melhor nível: humanização das figuras, atmosfera tonal, ritmos dos panejamentos, preciosismos de luz dirigida. As soluções formais são conhecidas (cabeças, poses e mãos, fundos, arvoredo) e coincidem com modelos da mesma fase ("São Sebastião", "Baptismo", "São Pedro" e demais tábuas da Sé de Viseu hoje no Museu Grão Vasco, "São Miguel" de Tarouca e "Pentecostes" de Santa Cruz de Coimbra). Note-se o figurino plebeu da Virgem entronizada com Jesus ao colo, ou o realismo dos anjos músicos tocando alaúde e charamelas e lendo uma pauta de canto-chão. A peça reflecte frescura de pincel, superfícies transparentes, desenho seguro, valores esbatidos a contra-luz, num verdadeiro elogio ao experimentalismo humanístico do Renascimento. O artista explorou o realismo do cântico angelical e a eficácia do discurso ideológico assumido face à comunidade que visava servir. É das suas peças mais cuidadas e confirma o nível absolutamente ímpar do mestre viseense no panorama internacional do tempo. O "corpus" foi estabelecido por Luís Reis-Santos no livro "Vasco Fernandes e os pintores de Viseu no século XVI" (1946). Em 1992, a Comissão dos Descobrimentos (CNCDP) organizou no Palácio Nacional da Ajuda a exposição "Grão Vasco e a Pintura Europeia do Renascimento" (comissariada por Dalila Rodrigues), que constituiu a primeira visão de conjunto da obra, embora sem aduzir nenhum novo quadro ao "corpus" estabelecido desde 1946 (salvo algumas peças de pintores sequenciais). A questão mais estranha é que um quadro da melhor fase de produção do mestre e com tão reconhecíveis características de estilo pudesse passar despercebido tanto tempo ao olhar dos estudiosos! Tal facto maior relevo confere à identificação e impõe o seu urgente exame científico, já em curso pela equipa de José Pessoa (técnico do Instituto Português de Museus). Acresce que o exame integrado irá ajudar a esclarecer melhor não só a formação de Vasco na oficina lisboeta de Jorge Afonso, como a figura de Gaspar Vaz, seu misterioso discípulo, que visivelmente se inspirou numa composição como esta para compôr o retábulo de Nª Sª da Glória em São João de Tarouca. O descobrimento de uma mais-valia do Património nacional como é este Grão Vasco desconhecido dos meios científicos, mais confirma a urgência de o Estado português se abalançar na tarefa de dar cumprimento ao Inventário de Bens Nacionais, que não está feita ao contrário do que alguns dizem, e que é absolutamente inadiável. Para o estudo preliminar do painel, agradecemos o apoio e calor do técnico do I.P.M. José Pessoa, da directora do Museu da Guarda Dulce Helena Borges, do director do Museu de Viseu Alberto Correia, do técnico de restauro Joaquim Inácio Caetano, dos historiadores de arte Manuel Batoréo e Catarina Valença Gonçalves e do medievalista José Manuel Vargas, além de toda a população de Aldeia Viçosa, a quem manifestamos vivo reconhecimento. *Historiador de Arte. prof. da Faculdade de Letras de Lisboa

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