O hospital que decepcionou os arqueólogos

Soterrado em plena Praça da Figueira, o Hospital de Todos-os-Santos está neste momento a ser alvo da segunda e última escavação arqueológica da sua atribulada existência. O que dele resta irá ser destruído para permitir a construção de um parque de estacionamento subterrâneo.

Faltam meses para que os vestígios daquela que foi considerada "uma das mais importantes construções lisboetas" pelo actual vice-presidente do Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar), Paulo Pereira, sejam definitivamente destruídos. Os restos do primeiro grande hospital de Lisboa, o Hospital de Todos-os-Santos, soterrado na Praça da Figueira, estão a ser alvo da segunda e última escavação arqueológica da sua atribulada existência. Depois de registados em desenhos e fotografias serão destruídos, para dar lugar a um parque de estacionamento subterrâneo. Da Praça da Figueira apenas deverão ser retirados os objectos encontrados na escavação, que mais tarde serão mostrados no Museu da Cidade.A decisão de arrasar os vestígios desta obra de arquitectura utilitária que ficou pronta em 1503 parece ser pacífica. "Tendo em conta o estado de destruição dos vestígios não faria sentido preservá-los", considera a directora do Museu da Cidade, Cristina Leite. "Esta foi uma má surpresa em termos patrimoniais". Os bons resultados da escavação efectuada em 1960 em parte da Praça da Figueira por Irisalva Moita tinham dado aos arqueólogos algumas esperanças para esta segunda intervenção. De qualquer forma, mesmo antes de a escavação ter tido início já o Instituto Português de Arqueologia (IPA) tinha garantido ao empreiteiro que, independentemente dos seus resultados, não haveria nenhum impeditivo à construção do parque, disse ao PÚBLICO a arqueóloga Jacinta Bugalhão, daquele organismo. "O IPA reservou-se, no entanto, o direito de impôr condicionantes ao projecto", acrescentou. "Mas o hospital [a parte que não tinha sido escavada nos anos 60] revelou-se um pouco mais desmontado do que aquilo que estávamos à espera", referiu Jacinta Bugalhão, salientando, no entanto, o "grande valor patrimonial das ruínas".Por outro lado, existem pressões para que o trabalho dos arqueólogos seja célere. "Claro que existem", diz Cristina Leite. "As obras são um transtorno quer para a circulação rodoviária quer para os comerciantes. E as infra-estruturas em funcionamento [electricidade, por exemplo] tiveram de ser desviadas".Entre as estruturas do velho hospital, algumas peças de cerâmica, cantarias lavradas e várias sepulturas, os arqueólogos encontraram algo de que não estavam à espera: dois grandes postos de transformação em betão, um da Carris e outro da EDP. O posto de transformação da EDP destruiu a enfermaria de São Cosme. O da Carris fez abater parte de um troço do cano real de São Domingos, que foi uma das primeiras grandes obras públicas de saneamento, e estragou os vestígios do celeiro do hospital.Não foram encontrados instrumentos médicos até ao momento. É provável que quando o Marquês de Pombal mandou transferir o Hospital de Todos-os-Santos para o então extinto colégio jesuíta de Santo-Antão-o-Novo, criando aí o Hospital de São José, os instrumentos tenham sido levados para ali. Foi D. João II quem mandou construir, no local onde até aí estavam as hortas do convento de São Domingos, a unidade hospitalar. Tratando-se de uma zona já periférica da cidade - o centro ficava na Sé e mais tarde no Terreiro do Paço -, nem por isso foi bem aceite para a localização do novo hospital. Para a ciência médica da época, era "pouco são", porque muito húmido e pouco arejado. Mas a vontade de regularizar, do ponto de vista urbanístico, o traçado daquela parte da praça sobrepôs-se. O problema foi resolvido colocando os doentes no primeiro piso. No rés-do-chão havia arcadas semelhantes às do Terreiro do Paço. Com uma igreja no centro do edifício e a fachada virada ao Rossio, a obra acabou por só terminar já no tempo de D. Manuel. Nessa altura tinha em funcionamento três enfermarias, uma casa das boubas - para tratar a sífilis -, uma casa dos enjeitados e um albergue. A planta era em forma de cruz e os doentes internados assistiam à missa através dos janelões abertos na capela-mor. Por trás de cada cama havia uma porta que dava para um corredor, para levar dali os mortos sem que os outros doentes vissem. As escavações em curso, conduzidas pelo arqueólogo da Câmara de Lisboa Rodrigo Banha da Silva, descobriram já várias sepulturas e cadáveres. Nos 4.000 metros quadrados de área de escavação também está enterrada uma necrópole romana, mas os arqueólogos ainda lá não chegaram.De entre os funcionários que trabalhavam no hospital faziam parte um barbeiro e sangrador, encarregue das barbas, tosquia e sangria dos doentes, e uma cristaleira, mulher que tinha como função dar clisteres. Considerado dos melhores hospitais da Europa do seu tempo e a primeira grande instituição estatal portuguesa dos tempos modernos, tinha entre as suas fontes de receita as taxas cobradas sobre os espectáculos teatrais da cidade. Em 1601 um incêndio destrói o interior da igreja. Mas é em 1750 que um outro fogo, mais violento que o anterior, devasta parte significativa do edifício, que ainda não se recompôs quando se dá o terramoto. Os doentes têm de ser colocados em tendas no Rossio. Catorze anos mais tarde o que resta do hospital é demolido, no âmbito do projecto de reconstrução da Baixa.Foram estas vissicitudes que levaram o vice-presidente do Ippar a escrever, num artigo publicado em 1993: "O hospital possui ainda hoje um assombroso poder evocativo. A sua importância pode medir-se na razão directa dos castigos que o tempo e os acidentes lhe foram inflingindo, e na resistência que lhes moveu. Nesta condição paradoxal encerra, igualmente, todo o seu fascínio, porque parte dele se sabe hoje enterrada - e não apenas encerrada na poeira dos arquivos".

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