Viva Maria!

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Não, minha cara. Em matéria de rituais de Sexta-feira Santa limitei-me ao "Capitães da Abril", de Maria de Medeiros, numa sala das Amoreiras. E gostei. Interpretei o filme como um olhar feminino e fascinado sobre a Revolução, como um diálogo entre duas pessoas: a menina que viveu a Revolução no registo da alegria infantil, por contágio dos adultos que a rodeavam, "compreendendo" mesmo quando ainda mal percebia; a jovem mulher que, vinte e tal anos depois, a rememora e recria, incorporando-se, numa espécie de "mise en abîme", entre o povo de Lisboa.Encarei o filme como parábola da revolução e não como reconstituição histórica. Do ponto de vista do cinema de ficção, os atropelos à verosimilhança (os jovens a fazer amor dentro do chaimite, cena, aliás, narrada através de uma elipse) integram o "contrato ficcional". As incoerências parcelares ajudam a construir a coerência do relato fílmico no seu todo."Uma revolução é um espectáculo e queria restituir isso - disse Maria de Medeiros a José Manuel Rodrigues da Silva. E, para o fazer, precisava de tomar certas liberdades narrativas em relação às personagens e ao que se passa com elas" (Jornal de Letras, 19 de Abril). Ficcionalizar os eventos históricos foi a legítima escolha de Maria de Medeiros para o seu filme. Afinal, "os factos", como diz Paul Veyne, "são sempre aquilo que nós os fazemos ser". Queres saber se concordo com a minha amiga Maria do Carmo Piçarra, quando escreve que "a obra tem uma fragilidade estrutural", porque "não há uma opção no sentido do documental nem do ficcional..." ("O Independente", Caderno 3, 20 do corrente)? Com toda a franqueza, não é essa a minha opinião. Parece-me, pelo contrário, que nessa vontade de conjugar a História e as "estórias" reside a força da narrativa de Maria de Medeiros. Chamo aqui, em meu abono, a ironia de uma personagem de Godard, segundo a qual Méliés seria o fundador do documentário e Lumière o pai do cinema de ficção. Em "A Guerra e a Paz", de Tolstoi, Napoleão elabora uma longa e sofisticada "toillete" antes da batalha de Borodino. O relato é inexacto do ponto de vista histórico (ocorreu algo de semelhante, mas no exílio em Santa Helena), além de inverosímil do ponto de vista da intriga (por ocorrer antes da batalha), mas foi por isso mesmo que o escritor o incluiu na narrativa. E essa liberdade criativa só contribui, pela nota de absurdo que serenamente introduz, para a dimensão de obra-prima atribuída ao romance. São as sequências, a roçar a comédia, no Rádio Clube Português (que injustiça, caro Joaquim Furtado!), que evitam a derrapagem épica, a reboque das cenas de "massas" nas ruas e praças de Lisboa. São os amores da protagonista (a própria Maria de Medeiros) que, de algum modo, mostram que a homenagem aos "capitães", explicitamente assumida, tem os seus limites: a leitura do "diário" do militar revela massacres praticados na guerra colonial (as orelhas cortadas aos africanos mortos em combate e transformadas em troféus; os supostos "jogos de futebol" com as cabeças de cadáveres dos guerrilheiros africanos) e introduz a crise no casal. E se, na hora da revolução, o militar se redime, a opção final da mulher é pelo estudante civil e esquerdista, liberto da cativeiro em Caxias.A autora encara de frente a guerra colonial e os seus crimes. Confronta-nos, logo no genérico, com imagens insuportáveis de um massacre nas colónias africanas. As cenas do bar, logo no início, dão conta de um clima de opinião pública desfavorável aos militares, agredidos por um frequentador, possuído pela momentânea lucidez dos ébrios. As contradições internas à própria instituição militar são escalpelizadas: o oficial poupado à mobilização ultramarina foi promovido mais depressa do que os "camaradas de armas" que já cumpriram "comissões de serviço" em África. "Capitães de Abril" é uma homenagem aos militares, aos civis e às mulheres do 25 de Abril, à família de intelectuais e artistas a que pertence a autora (o maestro António Vitorino de Almeida rejubila nos "quadros de figurantes" do Largo do Carmo; o nome de uma das entrevistadas é Maria Armanda, tal como a mãe de Maria; a realizadora desdobra-se por duas protagonistas: a menina e a mulher). A figura de retórica mais solicitada é, talvez, a sinédoque que permite, a partir de quadros parcelares, restituir a Revolução no seu todo. A multidão no Carmo e nas ruas da Baixa é tomada pelo povo de Lisboa, Maia pelos militares de Abril, a "voz real" de Otelo pelo comando da Pontinha, Maria de Medeiros pelas mulheres de Abril, as cenas da Rua do Arsenal e do Largo do Carmo pelas operações militares do 25 de Abril no seu conjunto, a família da realizadora pelos intelectuais que se opuseram ao salazarismo, os presos a sair de Caxias pelos civis que lutaram pela democracia...As "liberdades ficcionadas" estão patentes no descapotável a indicar a rota aos revolucionários, nas mulheres a clamar pela revolução sexual e pelos homens na cozinha, na metralhadora do "chaimite" a entrar pela janela da velha senhora. Tudo isso é flagrantemente "inventado". Alguns acharão ridículas algumas dessas sequências, mas, afinal, é delas que emana a dimensão de um golpe de estado que vai transmudar-se em revolução social, com repercussão nas relações pessoais e nos gestos quotidianos, no mundo laboral e no microcosmos familiar... A personagem do tenente-coronel Gervásio, encarnada por Joaquim de Almeida, também nunca "passou" pelo guião da revolução-documentário, mas é a recriação feliz(uma personagem que poderia ter sido criada por José Cardoso Pires, por exemplo, em "O Anjo Ancorado") de uma espécie de céptico profissional que, a cada passo, questiona e incomoda Salgueiro Maia, o suposto herói sem mácula. Os jornalistas, se exceptuarmos o repórter-fotográfico (homem de imagens, simpático à argumentista), saem mal do retrato. O ministro do Governo de Caetano, como já foi sobejamente sublinhado, parece demasiado enérgico e viçoso para um regime tão decrépito.Os detractores da obra dirão que as personagens não têm "espessura", motivo sempre invocado pelo antigo "papa" da crítica literária, João Gaspar Simões, para explicar a relativa "pobreza" do romance português. As personagens são "planas", o que é compreensível num filme-acontecimento, em que os protagonistas mais salientes constituem, afinal, actores colectivos (o movimento das Forças Armadas, o povo de Lisboa, as mulheres portuguesas...). Mas - como notou, com inteligência, Stefano Accorsi, o actor italiano que deu corpo à personagem de Maia - Maria conseguiu dar às personagens "um toque feminino no sentido emotivo" (entrevista a Eurico de Barros, DN, 21 de Abril).Algumas são mesmo personagens complexas, como o major Gervásio (Joaquim de Almeida) e, sobretudo, Maria de Medeiros, ora transparente, ora elíptica. Stefano Accorsi recria um Maia em vias de beatificação, como o "puro" da Revolução. Ricardo Pais produz um Marcelo digno e credível, Luís Miguel Cintra devolve-nos um general salazarista de boa cepa e Rui de Carvalho evoca um Spínola rígido e antipático na perspectiva dos jovens capitães. A "voz real" de Otelo, mesmo "sem rosto" (ou por isso mesmo), preserva, intacta, a mitologia que o rodeia. Vejo, no filme de Maria de Medeiros, a Revolução do 25 de Abril "relida" por uma apurada sensibilidade feminina, em que todas as homenagens são balanceadas por um olhar comovido e irónico. O risco de resvalar para o épico é contrabalançado pelo registo humorístico. O lado documental é permanentemente questionado pela ficção. A pretensão de rigor histórico é relativizada pelo olhar subjectivo da câmara posta ao serviço de um cinema de autor(a). Sei que digo isto ao arrepio da crítica autorizada, visto que boa parte dela já torceu o requintado nariz. Mas vou mais longe, na irresponsabilidade de colunista sem pergaminhos cinéfilos - e escrevo: Viva Maria! E não o digo como alusão a um esquecido filme-paródia de Louis Malle. Refiro-me à própria Maria de Medeiros e à gratidão que lhe devemos: por nos ter devolvido este 25 de Abril, que é dela e - quero crer - de muitos de nós. Viva Maria! Viva Maria de Medeiros! Viva o 25 de Abril!

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