"Sem o negro não haveria Brasil"

Virgínia Rodrigues, a baiana de voz profunda que Caetano convenceu a gravar "Sol Negro", está em Lisboa para um concerto único no Coliseu. Na bagagem traz o seu último disco, "Nós", síntese sublime da alma negra numa mistura perfeita de afoxés e cânticos sacros. O samba em forma de oração, como profetizava Vinicius. O PÚBLICO falou com Virgínia antes do concerto, a propósito dele e de tudo o resto.

Não se sabe como o boato começou, mas a verdade é que há dois anos, quando se começou a falar pela primeira vez em Virgínia Rodrigues, houve quem imaginasse nela uma cantora lírica convertida às delícias do canto popular. Uma espécie de Olivia Byington negra, baiana, forte e roliça como Cesária Évora (embora mais nova do que ela) e senhora de uma voz de trovão amaciada por querubins. Fantasias. Porque Virgínia nasceu e cresceu pobre e se alguns salões conheceu foi mais para lhes polir o lustro com o suor do seu trabalho. Mas como toda a fantasia tem sempre algum fundo de realidade, a baiana apurou a voz em coros de igreja, onde se refugiou porque não tinha paciência para os outros rituais do culto. Depois veio o "príncipe encantado" desta história (Caetano Veloso, que a convenceu a gravar) e o desassossego dos estúdios e das "tournées". Ela teve medo, mas foi em frente e aprendeu a vencê-lo. Ou melhor, vai tentando vencê-lo onde quer que aporte para cantar. Aqui, por exemplo.Quando a encontrámos em Lisboa, Virgínia acabava de cumprir uma extenuante maratona promocional europeia, onde teve que explicar para vários idiomas a essência do seu disco, agora feito espectáculo e posto a circular pelos Estados Unidos e pela Europa. Do anterior, recorda o choque com as "parafernálias" do som: "Existia uma mistura de medo com dúvida: será que vai ficar bom? No segundo, tive mais medo mas menos inexperiência. O facto de serem canções nascidas na Bahia, nos blocos afro de carnaval, obrigou-me a transformá-las, a dar-lhes uma roupagem nova, completamente diferente do que elas são na verdade. Foi muito difícil."Mas o resultado ultrapassou as expectativas. Caetano Veloso estava verdadeiramente encantado com esta sacralização vocal dos cantos da folia carnavalesca negra e isso nota-se não só na sua participação no disco, num tocante dueto com Virgínia em "Jeito Faceiro", mas também no que, a propósito, tem vindo a escrever sobre a cantora que apadrinhou: "Unindo a alma religiosa e o corpo sensível da Bahia, sua voz poderá, se ouvida por muitos, revelar aspectos essenciais da força cultural dessa terra." Ela tem uma explicação mais linear, e nisto faz lembrar Cesária Évora: "É muito intuitivo, meu. Eu sinto e vou fazendo. Neste disco, ouvimos e escolhemos as coisas juntos: eu, o Caetano e o Celsinho [Fonseca]. Depois seguiu-se a transformação. O Celso a tocar, que para ele também eram novas estas músicas (ele é carioca) e eu a criar a minha interpretação. O projecto foi feito pelo Caetano e houve amigos que ajudaram na pesquisa, eu também pesquisei... foi uma correria! São músicas que não são mais cantadas nas rádios, lá na Bahia, e foram quase todas tiradas de gravações antigas - menos uma, o 'Canto para Exu'."Com 36 anos acabados de fazer, Virgínia nasceu precisamente no dia em que os militares apearam João Goulart da Presidência no Brasil e instauraram uma ditadura que viria a durar duas décadas. E isso leva-a a citar de um jorro a data e a hora, como se fossem marcas do destino: "Nasci no dia 31 de Março de 1964, numa terça-feira, às três horas da tarde. Por isso é que para mim não há meias, tem que ser hora certa: sim, sim, não, não." Foi este espírito decidido que a fez, já na juventude, agarrar-se à música: "A minha mãe e o meu irmão são protestantes. Quando a minha mãe entrou para a igreja protestante tinha eu 12 anos. E por causa dessa coisa de que filho tinha que obedecer aos pais, lá fui também, levada por ela. Mas nunca fui boa nisso, nunca gostei de igreja. Então peguei da igreja o que nela mais me interessava, que era a música. Até aos 19 anos, participei em tudo o que era coro lá: cantei em programas de caloiros, em eventos públicos, em coros, aniversários, formaturas... Tudo p'ra que me convidavam, e me pagavam, eu estava lá p'ra cantar. Não tive formação de escola mas tive algumas aulas de canto - aula de música no Brasil é muito caro. Mas estudo técnica vocal e isso dá-me uma segurança grande em termos de melodia, de criar sons. Desde que entrei no coro, nunca parei de ficar ligada à música."Mas já antes a música entrara naturalmente na sua vida: "O meu avô tocava acordeão, quando era novo, e gostava muito de cantar. A minha avó, quando era viva, cantava também nas rezas, naquelas ladaínhas, fazia parte da irmandade Coração de Jesus, muito católica... E gostava muito de samba, sambava muito bem, foi ela que me ensinou a sambar..."Mas se Virgínia não gosta "de igreja", como ela própria diz, já os orixás do candomblé lhe merecem outra atenção: "Eu vejo-os como eles são, como deuses. Abaixo de Deus, são eles quem me protege, quem protege os negros, porque são deuses da África. O candomblé é a minha religião. E vivo-o com intensidade. Nós precisamos de estar bem com a alma, cuidar do espírito. Há coisas na gente que se a gente não cuida, perde. Se não estivermos bem de cabeça, de espírito, perdemos o controle de tudo. Porque isto aqui [o corpo] vai para a terra, apodrece e acabou."O facto de "Nós" ter nascido a partir da revitalização de velhas canções dos blocos afro e reflectir o sofrimento e o orgulho dos negros brasileiros nas suas raízes não faz dele um manifesto. Mas não é possível ouvi-lo sem pensar por um momento na saga dos escravos africanos que deram ao Brasil a forma, cultural e social, que hoje tem. Virgínia Rodrigues não tem dúvidas a este respeito: "Sem o negro não haveria Brasil. E o disco tem a ver com isso, tem a ver com a escravatura, tem a ver com o que estão a fazer com as crianças de rua, como fizeram na Candelária, matando pessoas... o que estão fazendo com elas é uma monstruosidade!" Mas há coisas que transcendem a cor da pele, como o sofrimento: "O ser humano ainda hoje sofre por causa do poder", acrescenta.Mas há histórias que só os negros conhecem e que os acompanharam durante séculos, vindas de uma África longínqua que Virgínia não conhece mas conta um dia vir a visitar. Tradições que na Bahia se sedimentaram mais do que no próprio continente africano, por razões históricas: "A Bahia é o estado que mais cultua suas raízes. O candomblé, mesmo. Na Bahia, de Cachoeira, você encontra a Irmandade da Boa Morte e em Salvador há a Irmãs do Rosário dos Pretos. Foi criada porque os negros não podiam entrar na igreja católica e então criaram a própria irmandade deles, uma mistura de catolismo com candomblé, uma mistura que eu não aprecio. Diz-se que a igreja católica deixou de fechar as portas aos negros, mas só se for entre aspas... Hoje no Brasil, uma festa muito popular, que as pessoas acham muito bonita e eu não gosto, é a lavagem da porta da igreja do Bonfim. Vem de uma época em que os negros eram proibidos de entrar e ainda agora as baianas lavam as escadas da igreja mas não entram nela. E eu não entendo bem porquê."Entende, isso sim, que agora tem de lidar com o êxito e que isso lhe traz mais preocupações e cuidados: "O público recebeu-me bem no Brasil, embora eu tenha mais público fora do país que dentro dele", diz. "Quando eu entrei no mundo fonográfico, vi que era muito difícil, que é preciso gastar muita energia... Se não tiver cuidado, o cantor vira uma máquina."Estreado a 24 Março em Nova Iorque, o espectáculo "Nós" levará amanhã ao palco do Coliseu de Lisboa, além de Virgínia Rodrigues (voz), mais seis músicos: Luiz Brazil (guitarra acústica e direcção musical), Tony Botelho (baixo acústico), Deborah Cheyne (viola), Mila Schiavo & Ronaldinho Silva (percussões) e Raul Mascarenhas (sax e flauta). E, como convidado especial, junta-se a este "Nós" a voz da Ala dos Namorados, Nuno Guerreiro.

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