Duas hipóteses de teatro

"A Hipótese", de Robert Pinget, estreia na 5ª feira no Espaço A Capital, em Lisboa. Estreia não, porque o actor e encenador Diogo Dória apresentou a peça pela primeira vez há mais de dez anos. E a 9 de Maio há mais Pinget, também com Dória.

Admita-se a hipótese de que Diogo Dória inclui Robert Pinget entre os seus autores de eleição (mas não há como Nathalie Sarraute, figura de proa do "nouveau roman", acrescenta o actor). Confirma-se: o actor e encenador apresenta, na quinta-feira, o primeiro de dois espectáculos baseados em escritos do dramaturgo e romancista francês (nascido na Suíça) ainda desconhecido entre nós. "O Jorge [Silva Melo] é um terrorista nestas coisas: foi ele que me fez descobrir este autor", diz Diogo Dória. A descoberta deu-se há mais de dez anos, quando o director artístico dos Artistas Unidos lhe passou uma edição francesa de "A Hipótese" para as mãos. Dória leu, pôs de lado, voltou a ler, voltou a pôr de lado, até sentir vontade de montar a peça. Traduziu-a, encenou-a, interpretou-a. Em boa hora o fez, porque lhe valeu o Prémio Garrett para a melhor interpretação masculina. Já lá vão mais de dez anos. Aparentemente, Jorge Silva Melo continua a exercer os seus actos terroristas: a convite dele, Dória repõe "A Hipótese", a partir do próximo dia 27, no edifício que mais espectáculos nos tem oferecido nos últimos tempos (nada mais, nada menos que sete, desde final de Janeiro) - o Espaço A Capital, tecto dos Artistas Unidos pelo menos até Dezembro de 2001. Dória é um entusiasta daquele edifício húmido, com remendos de cimento pelas paredes, de estuque a cair e canos à mostra, porque é dos poucos que oferece "a possibilidade de apresentar projectos marginais".Num cenário reduzido ao mínimo - uma mesa, uma cadeira e uma estante com livros -, Diogo Dória veste a pele de um escritor isolado no seu quarto, Mortin de seu nome, angustiado com o seu texto e, por conseguinte, com a sua identidade, perdendo-se em conjecturas a propósito de um manuscrito desaparecido no fundo de um poço. "O autor, o autor, onde está o autor?", pergunta a personagem (autor presumível e efectivo), debitando hipóteses atrás de hipóteses, rendendo-se a um discurso no condicional, sem nunca chegar a certezas. Como um silogismo composto apenas por premissas e ao qual falta a conclusão. "Convido todos os presentes, aqueles que não rejeitam os acasos do pensamento nem os escolhos da linguagem, a experimentarmos um jogo", diz Mortin. O jogo é o da linguagem, sobre a qual Pinget lançou dados a vida toda. "As palavras têm uma vida independente da nossa razão. Jogar com elas revela-nos um mundo estrangeiro que é, no entanto, nosso", escreveu. Costumava dizer que não gostava das histórias e "A Hipótese" parece confirmá-lo: não há verdadeiramente uma acção, mas antes uma intrincada enumeração de hipóteses que reclamam toda a atenção do espectador, não vá ele perder-se nas constantes repetições do discurso apressado da personagem do escritor ("Entenderam tudo o que eu disse? Não falei muito rápido?", perguntava o actor no final do ensaio). Assaltado pela sua própria imagem (a mesma projecção de há dez anos) que a pouco e pouco se vai apoderando dele, debatendo-se pela sua autenticidade, Mortin tem tanto de trágico como de cómico: para além do texto, que roça frequentemente o absurdo (atente-se no relato da prisão de ventre...), os gestos são exacerbados, de uma teatralidade excessiva - Dória diz que "a representação do cabotino" o fascina. Pinget chegou a assistir à representação de Diogo Dória, em 1989, em Braga. "Disse-me que tinha seguido demasiado as indicações que ele dava no texto", confessa o actor, rindo. Seja como for, Dória regressou a ele, em 1995, adaptando o mais célebre dos seus romances, "O Inquisitório", ao palco. A estreia deu-se no Cine-Teatro Monumental, em Lisboa, e a peça foi reposta no Centro Cultural de Belém, no início de 1997, ano da morte do escritor. Novo regresso, desta vez marcado para 9 de Maio: "O Inquisitório" é, segundo o actor, "uma multiplicação de histórias que se passam num palácio", pura rendição de Pinget à "loucura de ficcionar". Dória interpreta o criado do palácio, que é submetido a um interrogatório cerrado levado ao extremo, onde se pergunta por perguntar e se responde por responder. "Sim ou não, responde-me", começa o texto. "É outra natureza, podia ser outro autor", diz Dória sobre "O Inquisitório". As três primeiras representações das peças têm entrada livre.

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