Ver o Ser e recitá-lo de novo

"Hinos Tardios" contém alguns dos poemas maiores do poeta maior que é Hölderlin. O que se sente que falta a esta tradução é uma outra respiração, mais quebrada, surpreendente, ousada e tensa e quase mágica. Mas para isso seria preciso arrancar da língua portuguesa algo para que ela não está preparada.

Não é fácil para o leitor português entender plenamente o lugar destes "Hinos Tardios" na obra de Hölderlin. As obras "tardias", quando não são obras de síntese - da Obra própria ou da tradição -, apresentam-se, ou como regressos (configurando uma evolução cíclica), ou como superação progressiva, por vezes mesmo recusa, de um percurso anterior. O caso de Hölderlin é talvez mais complexo, por razões de vária ordem: por um lado, porque a sua obra verdadeiramente tardia cai no longo período dito da loucura, e não é mais do que um conjunto caótico de fragmentos, cartas, lampejos, intuições, nos últimos anos assinados "Scardanelli", e com algumas datas extemporâneas; por outro lado, aquilo que a poesia tardia (que, cronologicamente, corresponde de facto ao "Meio da vida", como diz o título de um dos poemas breves mais conhecidos desta fase) nos traz é a versão extremada das "órbitas excêntricas" (a expressão aparece já no fragmento do "Hipérion", e deve ser entendida no seu sentido astronómico), daquela bipolaridade que marca toda esta obra - precisamente entre o elegíaco e o hínico, entre a expressão da perda e a consciência da missão profética da poesia, entre o perigo e a salvação (no hino "Patmos"), entre o vazio do presente e a visão de um futuro que pertencerá ao "deus por vir", Dionisos-Cristo (a figura que melhor dá corpo a esta utopia hölderliniana da comunhão absoluta entre homens, natureza e deuses futuros será porventura a de Empédocles, na tragédia com esse título). A obra tardia de Hölderlin dará apenas mais intensidade àquilo que já era visível antes, fazendo sobressair a "aura" que lhe é própria desde sempre, e que resulta da sua tendência para projectar na distância - espacial e temporal: Ílio, Garona, Cáucaso, Idades de Ouro... - o que lhe é próximo (terra natal, amigos, Neckar, Reno...), ou para atribuir aos "tempos da vida" (a vivência, as experiências do "secreto trabalho da alma") a dimensão de "tempos do mundo" (aquilo que conta, o místico, visionário, celebratório na sua poesia).Os "Hinos Tardios" desta nova edição portuguesa contêm alguns desses poemas maiores deste poeta maior. Em Português, eles interessam-me como pedra de toque para a avaliação do que neles pode ser essencial. Por isso, seguindo a tradução, iremos necessariamente dar às questões centrais desta poesia. Qualquer tradutor que se aventure na "esgrima fantástica" com os grandes poemas de Hölderlin - ou mesmo com a prosa - enfrenta um desafio quase impossível (mas também todo o intérprete que queira servir de mediador é apanhado num acto irresponsável: ou se cola ao texto, ou não consegue fazer passar o que nele há de mais próprio). Há demasiados factores - poéticos, histórico-literários, linguísticos - apostados em dificultar a tarefa de tradutores e intérpretes. Não temos, em Português, e no século XVIII, uma experiência poética equivalente à da revolução que constituiu a descoberta, para a poesia alemã, dos ritmos livres por Klopstock, a partir da assimilação das odes gregas. Em Hölderlin, esse trabalho poético decisivo continua-se, tendo agora como modelo os grandes hinos - patéticos, torrenciais, sublimes - de Píndaro, e a transposição da sua prosódia para estrofes alemãs cuja respiração não tem paralelo na poesia portuguesa. Hölderlin abandona, nesta fase da sua poesia, a expressão lírica mais vivencial e subjectiva, da poesia de amor e da natureza, apesar de tudo mais convencionais, para se lançar nessa "órbita excêntrica", uma trajectória parabólica cujos vórtices, complementares, são os de um movimento tensional entre o sair fora de si (o "entusiasmo", no sentido grego) e o cair em si (a contenção, sem derrames, nos limites de uma "lei calculável", também ela antiga, que contraria toda a poesia moderna e as suas tendências mais subjectivas e particularistas).Não sei se é possível traduzir este Hölderlin (aquele que, como bem viu Nemésio, foi mais "íntimo dos deuses e das fontes" e mais "tocou fímbrias de lume nas palavras"). Sempre me assustou a ideia. E também tenho dúvidas sobre se este tempo, todo feito de presente, mas sem presenças claras a balizá-lo, sem utopias que o conduzam, um tempo em que (como diz o poema de Rilke sobre Hölderlin) "detença, mesmo com as coisas mais íntimas, / não nos é dada" - não sei se este nosso tempo é um tempo para a tradução desta poesia que tão a sério leva a dialéctica da perda (da unidade do mundo, que hoje é uno e global, mas não sabe que há outra unidade, a dos mundos) e da utopia (do regresso de deuses que, para nós, já aí estão). Entre estes dois pólos da ausência agiganta-se, em Hölderlin, a esmagadora presença de uma poesia que talvez só no original deixe ouvir toda a força, originalidade e estranheza que contém.Se tivesse de traduzir Hölderlin, penso que tentaria fazê-lo do mesmo modo como ele traduziu Sófocles. Não sei - quase só tenho dúvidas sobre esta matéria - se é tarefa possível, e receio que, a sê-lo, não interessará ao nosso meio literário, não será entendida por ele, e muito menos pela indústria da cultura dominante. Talvez nos console o saber que foi isso o que aconteceu já com o poeta há duzentos anos, e que o levou a pedir ao seu tempo uma "leitura benévola", como se pode ler na nota que antecede a "Festa da paz":"... se houver quem ache a sua linguagem pouco convencional, tenho de admitir que não sei escrever de outro modo" (p. 79). O risco de traduzir Hölderlin é o do perigo inerente ao uso de um "bem" como o da língua, um bem que, como ele próprio escreveu, é "de todos o mais perigoso", porque mais vulnerável àquela tentação do mercado que é a de tornar comum e compreensível o que é único e inconfundivelmente fundador.Não se trata aqui, evidentemente, de sacralizar um "corpus" poético intocável. "O deus está perto", mas é "difícil de apreender", porque nos falta aquela "palavra sólida" que há que cultivar para que "aquilo que é "possa ser bem interpretado. Estou a referir (e a sugerir algumas alternativas de tradução, nomeadamente param "o deus" que, no universo helenizado de Hölderlin, não pode ser transformado em "Deus": p. 101) o hino "Patmos", no qual, é um facto, também se lê que "onde existe perigo / cresce também aquilo que salva". O que nos pode salvar de perdermos a "palavra sólida" do texto de Hölderlin é apenas um entendimento da leitura (da tradução) como exegese que tem de ser uma busca e uma entrega. Como Hölderlin fez com os Gregos, que traduziu, não apenas para enriquecer a literatura alemã em tradução ou para mostrar o seu virtuosismo, mas para compreender melhor o seu próprio caminho, à luz de uma "lei" e de uma "regra segura" aprendidas no "transporte trágico" de Édipo e Antígona. A lição, aplicou-a depois à sua própria poesia.Pode dizer-se que a tradução de Maria Teresa Dias Furtado - que já se debruçara sobre algumas "Elegias" (1992) e sobre o romance inacabado "Hipérion" (1997) - não anda, em geral, longe da música, dos ritmos e do universo lexical do original (Paulo Quintela - "Poemas", 1944 - geralmente mais hierático, por vezes chega ainda mais perto do andamento e da atmosfera do texto alemão). Mas nenhum dos tradutores me parece ter ainda levado suficientemente em conta o que Hölderlin diz na nota a "Festa da paz" antes referida: o que aí se lê implica que estes hinos exigiram já uma tradução intralinguística aos seus contemporâneos alemães. O mesmo se deveria então passar, por maioria de razões, com os leitores portugueses de hoje. O que é novo em Hölderlin deriva sobretudo dos efeitos particulares da sintaxe e da estrutura métrica, por vezes intrincada, das odes e dos hinos, resultando tudo isso num andamento rítmico estranho e a exigir uma leitura muito atenta. O que o Hölderlin tardio faz - e Adorno viu muito bem isso no seu ensaio intitulado "Parataxe" - é escrever contra a tendência natural da frase alemã, que é antes hipotática (a prosa de um contemporâneo como Heinrich von Kleist é disso o melhor exemplo). Este tipo de efeitos, juntamente com um léxico predominantemente situado na esfera religiosa, heróica, mitológica e da interioridade, com a força criativa dos compostos alemães e, finalmente, com o irromper frequente de picos ideativos (isto é, momentos reflexivos de síntese), dá o carácter solene, simultaneamente envolvente e distante, do poema de Hölderlin, e a aura própria dos seus grandes hinos.Que faz a tradução portuguesa? É uma versão honesta, muito honesta mesmo, que se esforça - e isso não seria pouco, se não houvesse outros apelos - por dar o sentido, complexo e tantas vezes enigmático, do texto de Hölderlin, e por transmitir a sua respiração solene e elevada. A vontade de clareza excede-se até algumas vezes, ao ponto de explicar um título como "O Istro", descodificando-o logo em "O Danúbio". Outras vezes, como no fascinante, e eventualmente apócrifo, hino em prosa "No ameno azul...", deixando-se levar, em certas passagens mais obscuras, pelo caminho do mais óbvio, e quanto a mim menos correcto. Mas o texto poético de Hölderlin não é apenas significação, é uma forma a que provavelmente nenhuma tradução poderá chegar. O que se sente que falta a esta nova versão é uma outra respiração, mais quebrada, surpreendente, ousada e tensa e quase mágica, do verso de Hölderlin. Sinto que se pode ir mais longe, sei que será preciso arriscar mais, não na reconstituição de efeitos fáceis, mas no trabalho com a nossa própria língua. Seria preciso arrancar dela algo para que ela não está preparada, que a sua própria tradição poética lhe não ensinou. Seria preciso, dois séculos depois da genial prova a que Hölderlin submeteu o Alemão, violentar toda a convenção poética da língua portuguesa. Seria preciso dar um Hölderlin quase ilegível em Português - perto do que Fiama fez com o "Cântico Maior", Herberto Helder com alguns "Poemas Ameríndios" ou Henri Meschonnic com o Antigo Testamento em Francês. A aventura seria a de traduzir segundo critérios performativos do discurso, e não da língua, a de afrontar todas as práticas correntes do traduzir, introduzindo a alteridade na própria língua de chegada, a de aproveitar a oportunidade, única, de realizar o que Meschonnic (em "Poétique du traduire") chama a "decapagem do texto", traduzindo o marcado pelo marcado e o não-marcado pelo não-marcado, para reencontrar "o concreto da força" que vive nestes poemas.É a tradução como utopia. Ou como uma prática de linguagem que dificilmente encontramos na literatura traduzida em Português, a de uma linguagem do "inexpressivo", que contraria as noções mais correntes do "belo" e do "poético", e que Fernando Guerreiro, o poeta português que mais obsessivamente tem convivido com Hölderlin e melhor o entendeu, dá bem numa linha de "Vento do Norte. Friedrich em Tübingen", de 1983: "uma expressão (...) / da qual todo o efusivo entendimento fora excluído". Comentando as traduções dos Gregos por Hölderlin, Walter Benjamin (numa densa passagem do ensaio sobre "As Afinidades Electivas") fala também de uma prática - modelo possível para uma tradução nova dos seus próprios hinos e odes - que em Hölderlin é a da criação de assimetrias deliberadas no discurso, de interrupções na sequência das ideias, e escreve: "a melhor maneira de definir aquele ritmo será a de afirmar que alguma coisa, para lá do poeta, corta a palavra ao poema". É por isso que um hino de Hölderlin (ou as suas traduções do Grego), contrariamente, por exemplo, a qualquer obra de Goethe, dificilmente poderá ser visto como belo e harmonioso. A sua lei é agónica, o seu discurso excêntrico, a sua forma final a de um cristal anguloso - nunca a de um organismo. Há nisto um fundo de terrível e difícil simplicidade: Hölderlin - e cito de novo Fernando Guerreiro - mais não fez, afinal, do que "ver o Ser e recitá-lo de novo" na escrita do poema. Com isso, descentrou-se, colocou-se, definitivamente, "fora das portas da cidade". Qualquer tradutor seu, se quiser aproximar-se da matriz, será inexoravelmente arrastado por esse movimento.

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