O cabaret do tango

O cartaz de espectáculos do Festival Extremos do Mundo encerra com tango: não o das danças sofisticadas de rosa na boca, mas o que fez García Lorca chorar quando visitou Buenos Aires. De hoje a domingo, o Teatro Taborda disfarça-se de cabaret argentino. O nome dos responsáveis não podia ser mais adequado: Recuerdos Son Recuerdos.

Quando a companhia argentina Recuerdos Son Recuerdos subir hoje ao palco do Teatro Taborda, em Lisboa, para apresentar o único espectáculo que faz parte do seu reportório, Mário Guimarães e Cristina Pereira, um técnico de radiologia e uma gestora, estarão entre os cerca de 30 alunos de tango no seu primeiro dia de romaria por Buenos Aires. "Tal como um muçulmano tem de ir a Meca, nós vamos à Argentina. Mas não vamos sair de Buenos Aires, vamos fazer as nossas férias todas só de tango, frequentando aulas e indo a milongas [salões onde se dança o tango] para apreciar os vários estilos. Havia uma necessidade de ir às raízes...", explica Mário, 39 anos, professor de tango na Dance Factory, em Lisboa (ver texto ao lado). Enquanto Mário e Cristina atravessam o Atlântico ao encontro da genealogia do tango, quis o acaso que a companhia Recuerdos Son Recuerdos fizesse a viagem no sentido inverso para folhear em Lisboa o seu álbum de recordações das velhas glórias da popular música e dança argentina. Na verdade, "Glorias Porteñas" ["porteños" é o nome que se dá aos habitantes de Buenos Aires], o musical que encerra o cartaz de espectáculos do Festival Extremos do Mundo, da Culturgest, não celebra unicamente o tango, mas recupera velhas canções de estilos tão diferentes como a "ranchera" ou a valsa, o "fox-trot" ou a rumba, que estiveram na base da fundação do "tango-canción", celebrizado internacionalmente por Carlos Gardel. Recriando a atmosfera de um cabaret argentino dos anos 30, os actores e músicos da companhia optaram pela menos óbvia das escolhas: em vez do apreciadíssimo aparato visual das exibições coreográficas, assentes na mitologia do tango que o reduz a um jogo de sedução entre o homem e a mulher, preferiram resgatar do esquecimento uma expressão musical que nos anos 30 era alimentada por modestos artistas itinerantes que animavam os salões de província da Argentina sem a notoriedade de um Carlos Gardel ou Juan Carlos Cobian. Não se espere, portanto, ver em "Glorias Porteñas" bailarinos sofisticados de rosa na boca interpretando histórias de amores traídos ou paixões sórdidas - ele de imprescindível brilhantina no cabelo, ela de vestido negro decotado, de preferência com racha -, mas a simplicidade dos harpejos de um par de guitarristas, o som familiar do "bandoneón" (pequeno acordeão forjado na Alemanha e celebrizado com Astor Piazzolla), a ingenuidade de uma cantora e os comentários divertidos de um apresentador/"entertainer". É nisso que reside a sua originalidade e o seu desafio: longe da popularidade dos espectáculos de tango dançado que têm acorrido a Lisboa nos últimos tempos, "Glorias Porteñas" não é a mais tentadora das propostas para a crescente comunidade de "tangueros" portugueses que frequenta as escolas de tango (ver textos ao lado), onde os bailarinos de "shows" como "Forever Tango" - apresentado no CCB, em Março passado - são insistentemente citados, nem para os devotos ouvintes do erudito "nuevo tango" de Astor Piazzolla. "Quisemos recuperar a linguagem popular dos anos 30, que se ouvia nas feiras e nas aldeias. Interessava-nos o tango dos primeiros anos, que é menos melancólico do que o que se fez a partir de 1935", explicou, numa entrevista, Brian Chambouleyron, um dos guitarristas em palco e compositor de alguns dos temas que integram o espectáculo, como o instrumental "Las cosas no son como son" ou "Carnaval de mi soñar". Sentimental, pois, "ma non troppo": as canções evocam temas caros ao tango, como o abandono, os amores não correspondidos e a boémia, mas sem a lamechice debochada de que Jorge Luis Borges acusava o tango. "Apesar do tango ser a base do espectáculo, nós convocamos um reportório mais rural, camponês, e seguimos uma linha cronológica de modo a incluir os 'fox-trot' e as valsas", acrescenta o músico. "É um reportório um pouco 'naïf', que se apoia na autenticidade musical do tango dos primeiros tempos".A autenticidade estende-se, aliás, à caracterização dos actores/músicos - de brilhantina no cabelo milimetricamente dividido por uma risca, cravo na lapela, bigode fino, lenço ao pescoço ou manta no ombro - e ao "décor" da sala - o domínio é o dos salões com o verniz do soalho empoeirado, onde se alinham mesas de bistrô fumegantes dos cigarros acesos, em volta das quais se reúne a assistência. Apesar da companhia insistir na denominação de "teatro musical", a dramaturgia de "Glorias Porteñas" é discreta e aleatória, limitando-se exclusivamente à prestação do picaresco mestre de cerimónias (Rafael Solano). É ele o encarregado de soltar as gargalhadas da assistência, entre as inversões de frases ("Bien, amigos, buenas noches. Buenas noches, amigos, bien."), as interrupções das entradas em palco dos artistas ("transeuntes das estradas da arte", como faz questão de esclarecer), os ensinamentos sobre a vida artística ("Nós, os artistas, não queremos mais do que o vosso amor. Amem-nos.") ou a generosa revelação da sua própria produção literária."Convido-vos a subir na onda expansiva da explosão multiestelar que é a presença destes artistas", diz, com eloquência q.b. O fenómeno pode ser visto, a olho nu, no Teatro Taborda, hoje e amanhã, às 23h, e no domingo, às 17h.

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