O industrial que gostava de livros

A editora Portugália lança hoje em Lisboa uma fotobiografia do seu fundador, o industrial Agostinho Fernandes, que foi uma das mais fascinantes figuras de mecenas do Estado Novo. Nascido pobre, numa aldeia algarvia, edificou o maior império conserveiro português, reuniu uma colecção de seis mil obras de arte, criou a Portugália e fundou a produtora Cinelândia.

A Portugália lança hoje no Castelo de S. Jorge, em Lisboa, uma fotobiografia do industrial e mecenas Agostinho Fernandes, que fundou em 1942 esta editora (ver texto em baixo), agora recuperada por um dos seus netos, Diniz Nazareth Fernandes. O livro é coordenado por um antigo colaborador de Agostinho Fernades, o editor Cruz Santos, que aceitou o convite do seu descendente para dirigir a nova Portugália. Prejudicada pela escassez de documentação - e especialmente pelo desaparecimento do arquivo da Portugália -, a obra reúne, ainda assim, um interessante conjunto de materiais iconográficos, acrescidos de uma cronologia de Agostinho Fernandes, estabelecida por Laura Castro. Completam o volume, que inclui um capítulo dedicado à actividade do retratado na indústria conserveira, longos depoimentos de Luís Amaro, Urbano Tavares Rodrigues, José Augusto França e Alfredo Margarido, além de várias dezenas de outros testemunhos, entre os quais se contam os dos escritores Eugénio de Andrade e Alçada Baptista e os dos pintores Júlio Resende e Júlio Pomar. A pouca correspondência que sobreviveu inclui cartas trocadas com Jaime Brasil, Aquilino ou Almada Negreiros. Joaquim Agostinho Fernandes nasceu em 1886 na aldeia algarvia da Mexilhoeira Grande, numa família rural de parcos recursos. Nos anos 30, possuía já o maior grupo nacional do sector da produção e exportação de conservas de peixe. Em 1942 fundava uma das mais notáveis editoras portuguesas deste século, a Portugália, e, logo no ano seguinte, lançava a produtora cinematográfica Cinelândia, que veio a extinguir-se em 1958.O futuro industrial abandonou o Algarve aos 13 anos, rumo a Lisboa, onde partilhará a mesma pensão com o pai de Óscar Lopes, Armando Leça. O seu primeiro emprego, conseguiu-o nos célebres armazéns Grandela, de onde se despediu para se tornar paquete de um alfaiate. Irrita-se por lhe descontarem as gorjetas do salário e deixa também esta função, acabando por ir parar aos escritórios de um exportador inglês de madeiras, Harold Edwin Oakley, que o incentiva a estudar. No Ateneu Comercial de Lisboa, onde assiste às aulas nocturnas, obtém prémios literários, dedica-se ao boxe e aprende a tocar bandolim.A viragem do século apanha-o já noutra firma britânica, a Harker Summer, onde trabalha como contabilista. A firma fornecia equipamentos para fábricas de conservas, permitindo a Agostinho Fernandes familiarizar-se com o sector a que, mais tarde, iria dedicar-se por conta própria. No início da Primeira Grande Guerra, chegara a gerente da Empresa Eduardo Gomes Cardoso, construtora de maquinaria, e, pouco depois, tornava-se sócio-gerente da Portuguese Corporation of Commerce, uma importadora de cereais e carvão que veio a adquirir a firma que esteve na origem do Banco Fonsecas & Burnay. Em 1920, aos 34 anos, funda a Algarve Exportador, base do seu futuro império industral, cujas fábricas se estenderão por toda a costa portuguesa, de Lagos a Matosinhos, passando por Setúbal, Lisboa, Peniche e Nazaré. É também por estes anos que começa a revelar-se o seu interesse pelos meios editoriais, com a publicação da segunda série da revista "Contemporânea", dirigida por José Pacheco - o "Pacheko" do "Orpheu" -, que obtém um louvor do Ministério da Instrução Pública. O industrial começa a relacionar-se cada vez mais intensamente com escritores e artistas plásticos, designadamente com Almada Negreiros, de quem possuía dezenas de trabalhos. A sua colecção de arte portuguesa, posteriormente dispersa, atingiu proporções extraordinárias. Laura Castro, na sua cronologia de Agostinho Fernandes, afirma que esta reunia cerca de seis mil telas.Este bem sucedido percurso de "self-made man" teve, no entanto, os seus precalços, como se confirma pelo facto de, durante a recessão económica do final dos anos 20, o industrial se ter visto forçado a vender, em dois leilões, parte da sua biblioteca.É em 1942 que assume definitivamente a sua vocação editorial, com a fundação da Portugália. As boas relações que mantinha com o regime do Estado Novo - em 1944 é-lhe conferido o grau de cavaleiro da Ordem de Instrução Pública - dão-lhe liberdade de manobra para editar escritores portugueses da oposição. Um dos poucos livros que se terá recusado a editar por prever problemas com a censura foi "A Questão Sexual", de Jaime Brasil. Em carta ao jornalista e escritor, explica: "Vítima quase trágica do problema sexual e a ele atribuindo os mais sérios malefícios de toda a minha estúpida e irreverentíssima existência, tenho pela sua divulgação o maior interesse". No entanto, acrescenta: "Estamos em Portugal, onde os livros do cientista Egas Moniz estão interditos, como as obscenas de Bocage, e, assim, como editor, não participo dos meus entusiasmos de leitor". Apesar do seu prestígio, a Portugália nunca foi um sucesso comercial, nem isso talvez interessasse muito ao espírito mecenático do seu fundador. Mas a catástrofe financeira mais grave foi a sua incursão no cinema, com a criação da produtora Cinelândia, na qual terá investido, a partir de 1943, mais de 50 mil contos, uma verba escandalosa para a época. Dirigida pelo pintor e cineasta algarvio Carlos Porfírio, a Cinelândia estreou-se com o filme "Ave de Arribação", de Armando Miranda, e, até 1958, produziu mais duas ficções - "Sonho de Amor", do próprio Carlos Porfírio, e "A Morgadinha dos Canaviais", de Caetano Bonucci - e diversos documentários. Agostinho Fernandes vai manter-se à frente da Portugália até 1971, quando transfere o controlo accionista da editora para o seu neto, Diniz Nazareth Fernandes. Morre no ano seguinte, aos 86 anos, deixando indicações para que se aguarde uma semana antes de se noticiar o seu falecimento.

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