O abraço indispensável

Cuba promoveu mais uma manifestação a favor do regresso de Elián González à ilha. O irmão de Fidel chamou ao garoto "símbolo da unidade" do país. Nos Estados Unidos, a ministra da Justiça americana pediu que o caso não fosse politizado. Mas é tarde: os políticos dos EUA debatem Elián e os cubanos de Miami ameaçam com a desobediência civil.

Numa sucessão vertiginosa de "revelações" e "investigações" sensacionais, alguns meios de comunicação iniciaram, durante a semana passada, o processo de "crucificação" da presidente da Associação Abraço, Margarida Martins. Por extensão, puseram-se em causa os métodos e os meios das organizações não-governamentais (ONG). E quase se acabou a pedir a intervenção do Governo para controlar estas instituições não-oficiais de solidariedade social, que anualmente movimentam "muitos milhões", como sugestivamente escreveu um editorialista.Tudo começou no princípio da semana, quando a TVI revelou alguns dos resultados de um inquérito promovido pela Inspecção do Trabalho e da Solidariedade às contas da Abraço. O relatório que, segundo a TVI, concluiu pela existência de "irregularidades" na gestão daquela associação, foi desencadeado na sequência de uma "denúncia" apresentada por um antigo colaborador da associação na Madeira, alvo de uma queixa-crime da direcção nacional por alegada fraude. O relatório que detecta as "irregularidades" conclui, segundo a TVI, que a direcção nacional teve razão contra aquele ex-colaborador.Ao que parece, a PJ já está a investigar, também alertada pelo mesmo. Só essa investigação poderá proporcionar matéria que permita ajuizar se as "irregularidades" detectadas configuram um ilícito criminal. É isto que naturalmente se deduz de tudo o que a TVI revelou. E o bom senso aconselharia a que se esperasse pelas conclusões da investigação da Judiciária, para perceber quem fez o quê - e com que grau de ilicitude - na Abraço.Mas não. A voracidade noticiosa alimenta-se da impaciência. De "investigação" em "investigação", saltou-se para a vida privada e financeira da presidente da Associação, antes de apontar a mira a outras ONG, a despropósito metidas no mesmo saco da Abraço. O semanário "Euronotícias" descobriu a Margarida Martins um formidável património imobiliário, mesmo que, na maior parte dos casos, o proprietário dos imóveis não seja ela... Dos diversos nomes referidos como proprietários, nenhum é de familiar de Margarida Martins; e, em uma das situações, figura o nome de uma amiga que é uma conhecida (mas não pelo "Euronotícias") professora universitária, sendo ilegítimo pensar que a amizade pressupôs transferência patrimonial.Tudo isto foi esclarecido por Margarida Martins, em declarações a diversos órgãos de informação e em artigo no PÚBLICO de sábado. Mas, apesar da circunspecção com que o assunto foi tratado pelos jornalistas do "Expresso", o director-adjunto daquele jornal não hesitou em falar dos "abusos irresponsáveis que terão sido cometidos na Abraço". E, doutrinário: "Dos excessos e irregularidades apontados no relatório, ressalta desde já a ligeireza de entregar a gestão deste tipo de associações ao amadorismo e arrivismo do 'jet-set' das noites lisboetas."Quanto a ligeireza, estamos conversados. Vamos ao resto.No texto aqui publicado no sábado, Margarida Martins fala de "caça às bruxas", a propósito do caso da Abraço. Não tenho dados para apreciar se tem razão, da mesma forma que os não tenho para decidir aquilo que à PJ e aos tribunais caberá assentar: se, sim ou não, há actos ilícitos entre as "irregularidades" detectadas.Mas há uma coisa em que posso subscrever o que Margarida Martins escreve. É quando ela diz que a sua associação, "no terreno da luta contra a sida, tem feito as lutas que as organizações governamentais não puderam ou não quiseram fazer". E isto é absolutamente verdade.É à Abraço que devemos a descrispação da sociedade portuguesa em relação à doença; é a ela que temos de recorrer se nos quisermos lembrar da forma descontraída como uma coisa necessária - o preservativo - foi reintroduzida nos hábitos sexuais; e é ainda nela que pensamos quando nos ocorre o exemplo de uma associação de solidariedade social que, na procura de meios para a sua missão, deu provas extraordinárias de inteligência, de imaginação e de humor. Foi tudo isso que fez da Abraço, em oito anos, um caso único de visibilidade pública - e, por isso também, tornou-se a mais destacada das organizações que em Portugal lutam contra a sida.Por causa da Abraço, milhares de doentes com sida ou de seropositivos encontraram apoio, conforto e acompanhamento; por causa da Abraço, milhões de cidadãos não infectados compreenderam a doença e aprenderam a reconhecer, ao menos mentalmente, a sua existência; e milhares voltaram a encontrar um sentido na palavra solidariedade. O trabalho da Abraço foi generoso, ambicioso e interveniente. Foi inteligente no aproveitamento dos "media", eficaz na busca de apoios, persistente no seu combate pelos doentes.Ninguém entregou a Margarida Martins o que quer que fosse. Foram ela e a sua equipa que souberam construir a associação, que lhe deram um sentido e uma identidade. É conveniente não esquecer isto, da mesma forma que convém não esquecer as origens da expressão "jet-set": não há, entre o Bairro Alto e a 24 de Julho, jactos fretados para transportar um conjunto de inúteis que vivem dos rendimentos. O "beautiful people" da noite lisboeta é, felizmente, muito menos abastado e muito mais criativo do que isso.A propósito da Abraço, diversos editorialistas exprimiram a opinião de que é necessário encontrar formas de "controlo" que assegurem o bom destino das verbas entregues como donativos às ONG. Não sei em que é que estão a pensar, mas suspeito que aludem a uma qualquer forma de intervenção administrativa, tipo inspecção do Tribunal de Contas ou coisa que o valha. É, evidentemente, um contra-senso. O que caracteriza as ONG, o que as distingue dos departamentos estatais, é a sua agilidade e não comprometimento com políticas oficiais, quer no domínio da solidariedade, quer em outros domínios da actividade social.Não poucas vezes, as ONG tornam-se incómodas, quando não mesmo francamente retrógradas, enquistadas em visões sectoriais e ensimesmadas numa verdade que é a sua e que parece não consentir a visão exterior. É verdade. Porém, o balanço da sua actividade à escala mundial é tremendamente positivo. Foi através delas que a consciência dos povos despertou para novas problemáticas, foi por elas que se movimentaram vontades e esforços que, de outra forma, nunca teriam chegado a sair da letargia das certezas cómodas. O seu papel não é resolver por substituição, é ajudar a informar e a reconhecer, e, depois, complementar aquilo que os Estados não podem ou não querem fazer, porque lhes falta estrutura ou porque lhes adormeceu a sensibilidade.Qualquer "publicização" das ONG tenderá a aniquilar, a prazo, a sua independência, quer dizer, a sua criatividade e eficácia. Os meios de que se dispõe para controlar as ONG são socialmente suficientes, se bem aplicados. Nos casos de fontes estritamente privadas de financiamento, os órgãos sociais e as auditorias podem e devem funcionar; no caso de fontes públicas, existem os meios legais - como o inquérito da Inspecção do Trabalho e Solidariedade e a PJ. O que existe chega. Como se provará pelo caso da Abraço - qualquer que seja o desfecho das investigações em curso.Uma última palavra, para Margarida Martins. Por tudo o que fez, e qualquer que seja o seu destino e o destino da Abraço, é indispensável enviar-lhe um abraço. Pelo que a Abraço nos tem dado.

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