Sacramento, a colónia impossível

Chamaram-lhe Colónia do Santíssimo Sacramento, mas a graça divina jamais foi concedida aos portugueses que em 1680 decidiram instalar-se nas margens do rio da Prata, mesmo em frente a Buenos Aires. Durante quase um século e meio, a cidade foi várias vezes destruída pelos espanhóis e outras tantas reconstruída pelos portugueses até que, para acabar de vez com o conflito, se inventou o Uruguai. Muito tempo depois, a aventura portuguesa ainda mexe no quotidiano da cidade: o turismo alimentado pelo bairro histórico é a sua principal fonte de receitas.

Na extremidade de uma estreita península que irrompe do Uruguai pelas águas barrentas do rio da Prata, mesmo em frente a Buenos Aires, um bairro de casas térreas demarcado pelos vestígios de uma muralha insinua a cada esquina um orgulho muito especial: "Colonia del Sacramento, Patrimonio Mundial de la Humanidad", lê-se nas parcas montras, nos recipientes do lixo, nos cartazes vincados em placas de metal, em todo o lado. Olha-se à volta e custa a acreditar. Onde estão as obras de arte, igrejas, conventos, fortes, os monumentos? Em que canto se esconderão casas magníficas, palácios opulentos, pontes esculturais, torres de pedra bordada ou qualquer outra daquelas construções que costumamos associar aos lugares eleitos pela UNESCO para a lista do Património Mundial? A verdade é que nada disso se vê em lado nenhum porque a distinção conferida a Sacramento não procura preservar tanto a obra construída como a memória legada pela ousadia de umas centenas de portugueses que um dia sonharam levar o Brasil até às margens do Prata.O "barrio histórico" de Sacramento, hoje uma pacata cidade do Uruguai com 25 mil habitantes, é um lugar português estranho e especial. Não impressiona pela extrema beleza das suas casas, como Ouro Preto, da solenidade das suas igrejas, como Goa, ou da imponência do seu forte, como Diu, na Índia. Ali o que sobressai é a singeleza das casas térreas que nos sugerem as aldeias transmontanas ou beirãs, a quietude do lugar e o testemunho simbólico de uma teimosia: a de aumentar ainda mais os limites do Brasil, uma colónia já de si excessivamente grande para a pequenez da metrópole que a originara. Nenhuma das casas antigas de Sacramento remonta a 1680, o ano em que os portugueses aí se instalaram pela primeira vez, mas por lá ainda se podem ver as construções do século seguinte que sobreviveram à erosão do tempo e à acção dos homens. Porque durante todo esse tempo o centro histórico "foi o bairro de gente tão pobre que até era conhecido como o bairro da punhalada", conta Maria Guzman, uma uruguaia de idade que descansava da visita à janela do bar Casa Grande.Manuel Lobo, o fundador, viajou da baía de Santos, no Brasil, até ao lugar onde fundaria a Colónia com cinco barcos e uns 300 homens. Não fazia um percurso original, há muito que os portugueses se aventuravam pelas terras da bacia do Prata onde mandavam os espanhóis. A própria Buenos Aires dessa época, segundo o seu governador, dom José de Garro, era "pela maior parte" povoada por "portugueses, seus filhos e descendentes". Mas uma coisa era viver segundo a lei do rei de Espanha, outra coisa era tentar subtrair-lhe o poder fundando uma colónia do outro lado do rio, a escassos 40 quilómetros de distância. Não admira por isso que a aventura de Manuel Lobo tenha durado pouco tempo: ainda em 1680, um ataque de 300 espanhóis e 3000 índios guaranis destruiu a primeira tentativa de instalação dos portugueses e Manuel Lobo, brilhante militar de carreira, foi preso, acabando por morrer pouco depois na actual capital argentina.A teimosia dos portugueses, porém, persistiu. Porque em causa não estava apenas um naco de terra - mesmo em frente, pelo estuário turvo do rio, circulavam os tesouros das minas de prata que os espanhóis exploravam com êxito no Alto Peru e já nessa época se conhecia a eficácia do princípio da geopolítica segundo o qual "quem domina a desembocadura, controla o rio". Com as bases principais mais próximas situadas a milhares de quilómetros de distância, em São Paulo e no Rio de Janeiro, os portugueses não tinham meios militares para exercer esse domínio e tiveram de se contentar com conquistas da complicada diplomacia da época. Certo é que um ano depois da primeira destruição, os espanhóis devolveram a colónia aos fundadores. No século seguinte um mortífero jogo do gato e do rato entreteve luso-brasileiros e espanhóis. Em 1750, no Tratado de Madrid, as partes desavindas chegaram mais uma vez ao entendimento, com Portugal a abdicar de Sacramento por troca de uma vasta área controlada por jesuítas espanhóis, o território dos Sete Povos das Missões. "Nós cedemos a Portugal o que não nos serve e para eles será de grande utilidade; e Portugal cede-nos a Colónia e o rio da Prata que não os beneficia e nos destrói", sintetizou Francisco de Auzmendi, um alto funcionário do governo de Madrid. Mas já com D. João VI no Brasil, o apetite sobre a estratégico estuário do grande rio do cone sul das Américas voltou a acirrar-se de novo. Depois de duas campanhas militares, o Reino Unido de Portugal e Brasil controlava de novo Sacramento. Os nacionalistas uruguaios insurgem-se então contra a ocupação, agora apoiados pela Argentina. Só depois da Guerra da Cisplatina, entre 1825/28, o velho conflito de séculos em torno da colónia se extinguiu de vez. E o vencedor não seria nem o novo estado herdeiro da colonização portuguesa, o Brasil, nem o epicentro do velho Vice-Reinado espanhol da Prata, a Argentina: mediado pelos britânicos, o conflito acabou com a criação de um pequeno estado tampão, o actual Uruguay. Lord Ponsomby, um dos mediadores da paz, afirmou: "Colocámos um algodão entre dois cristais".O que resta dessa teimosa persistência está hoje depositado nos limites do bairro histórico sob a protecção da UNESCO desde 1986. Até essa altura, Sacramento era uma cidade esquecida, calma, que vivia tão molemente como o caudal estival do rio. Depois, um conjunto de intervenções, algumas com financiamentos portugueses, principalmente da Fundação Calouste Gulbenkian, retocou a face do centro: retocaram-se fachadas, ergueram-se muros caídos e enterraram-se os cabos de electricidade e telefone. O bairro ficou mais simpático e num ápice "começaram a vir turistas de todo o lado, principalmente argentinos que desataram a comprar as casas todas", diz Daniel Baldi, conselheiro do município de Sacramento. Muitos "decobriram a cidade depois de Buenos Aires se ter transformado numa cidade insegura. Há empresários que compraram aqui casa, instalaram a família e só cá vêm aos fins de semana", diz Baldi. No centro do bairro, entre a Plaza Mayor e as avenidas do General Flores e de San Pedro, as portadas das janelas fechadas emprestam às ruas um certo ar de abandono. "A maioria destas casas são de férias. Há pouca gente a viver aqui", explica Adriana Gonzalez, funcionária do Conselho Executivo Honorário, o órgão que esteve na origem do processo de candidatura da cidade à lista do Património Mundial e que hoje fiscaliza todas as intervenções no perímetro classificado. Curiosamente, na cidade "ninguém se preocupa com a presença dos argentinos", garante Daniel Baldi. O seu poder de compra, porém, acabou por determinar a expulsão das famílias que resistiram durante anos ao definhamento do bairro histórico e por impedir que os uruguaios de médios rendimentos lá possam morar. "Os preços das casas podem atingir os 500 mil dólares (100 mil contos) porque para os argentinos é fino viver no bairro histórico", diz Adriana Gonzalez.Mais acima, nas avenidas que levam até ao porto onde atracam os modernos barcos que ligam em 45 minutos Sacramento a Buenos Aires, o circo da indústria turística instalou-se em força. Restaurantes, pequenos hotéis, lojas de "souvenirs" para todos os gostos colonizaram em força as avenidas principais. "O turismo é hoje o principal motor da cidade", afirma Daniel Baldi, apesar de "virem aqui muitas pessoas que não compram nada", no entender de Adriana Gonzalez. A verdade é que com o final das férias, em Março, "a cidade morre e, com excepção dos fins de semana, ou das pontes, só renasce em Dezembro", acrescenta. Ao longo dos meses do Inverno austral, a população de Sacramento regressa então à sua ancestral rotina. "Temos tempo para viver, falar com o vizinho, tomar chá de mate, tranquilos e sem problemas", diz Adriana. Mas em vésperas do Natal, Sacramento prepara-se mais uma vez para a sua recente vocação. A de mostrar ao mundo as relíquias de uma teimosia muito especial dos portugueses.Na próxima semana: Ouro Preto

Sugerir correcção