Vida de hotel

Polícia de choque, canhões de água, vidros partidos, dirigentes agredidos: os apoiantes do Kuomintang não aceitaram bem a derrota nas presidenciais de Taiwan. Mas o alvo da sua ira não é o candidato vencedor, mas o líder do partido, Lee Teng-hui, que já anunciou a sua demissão. Melhor reacção teve Beijing, que mantém uma posição reservada.

Em 1991 fui hóspede, por duas vezes e com um intervalo de pouco mais de um mês, do Hotel Metropol, em Moscovo. Uma tarde, armado de uma Olympus automática recém-adquirida, deu-me para o mais improvável dos passatempos: fotografar em pormenor (e só os pormenores) o lugar dramático onde Gide teve os "encontros imediatos" e os encontros falhados (com Bukharin, por exemplo) que lhe proporcionaram a denúncia da realidade estalinista, em meados dos anos 30 deste século.Nessa época, o Metropol era o hotel de eleição de todos os "ilustres visitantes" estrangeiros que se deslocavam à "pátria do socialismo". Por aqueles corredores, passaram Malraux e Orwell, Stefan Zweig e Paul Nizan. Aqueles quartos escutaram as conversas sussurradas entre companheiros de viagem a quem a realidade soviética era mostrada pelas lentes da doutrina estética dominante, cristalizada a partir de 1934 por Zdanov e fiscalizada pela intransigente polícia política de Béria.O Metropol, que fora uma das referências da Moscovo pré-revolucionária, como a Rua Arbat ou o Kremlin, transformou-se então numa instituição de propaganda do regime soviético. Em 1991, tudo isso tinha já acabado, uma cadeia internacional acabara de restaurar o hotel sem propriamente renovar o seu recheio e o restaurante do Metropol tornara-se um dos lugares "chic" da nova burguesia moscovita. Deve ter sido isso, mais do que o peso da história, o que me levou a essa estranha sessão de fotografias, de que restam umas três dezenas de provas (acusatórias?) em papel, a preto e branco. Se fotografar já é, para mim, uma actividade raríssima (sou um entusiasta das fotografias dos outros), fotografar a preto e branco deve ter sido circunstância única na minha vida. Vendo as imagens acumuladas, percebo a razão das duas coisas: o que via pedia-me o efeito de pormenor que só a fotografia, isolando e enquadrando, pode dar; e tudo me sugeria a nitidez algo soturna do preto e branco, porém tão adequada a sublinhar o esplendor do que efectivamente resplende e a dissolver nas sombras propiciatórias do claro-escuro o que é falso ou apenas brilha em aparência. Em suma, fotografei o Metropol porque o Metropol é um cenário extraordinário.Eu acho que é esta mesma atitude - com as devidas distâncias, que são as que medeiam entre o meu amadorismo e o rigor estético das autoras - que vim encontrar no belíssimo álbum de Clara Azevedo e Lucia Vasconcelos "Splendid Isolation - O Mito do Grande Hotel" (1999). E é por isso surpreendente que, na apresentação do livro, Daniel Blum fale de "trabalho da memória", de "desejo de roubar mais um instante à morte e à sua ameaça permanente", de "sereno trabalho de luto", tudo coisas excelentemente metafísicas, mas que, com a devida licença, não vêm ao caso. Porque o melhor do trabalho de Clara Azevedo e Lucia Vasconcelos é, precisamente, a implícita recusa de qualquer exercício nostálgico ou documental, a renúncia à busca de uma qualquer estética da decadência, o afastamento de uma eventual catastrófica antevisão dos sinais do desaparecimento destes grandes hotéis portugueses que continuam a existir - e bem, como se vê - neste final de século.Pelo contrário, "Splendid Isolation" é uma esplêndida digressão (uma "flânerie"), culta e sensível, por pormenores, traços, efeitos e ambientes que continuam a existir para serem fruídos, decerto em registo diferente daquele em que o Grande Hotel era frequentado na dobragem do século: com uma "cordial condescension backed by economic power", como disse um investigador inglês de história do turismo.Porque a sociedade se democratizou, o acesso ao Grande Hotel deixou de ser restritamente elitista e a própria instituição já não desempenha o papel de mediador de luxo entre o turista endinheirado e a pobre realidade envolvente. Uma ética do prazer substituiu-se à curiosidade entediada e o Grande Hotel, continuando a fazer jus à etimologia medieval da palavra (uma "demeure somptueuse"), é hoje lugar de culto do turismo de qualidade, sempre e só se mantiver os altos padrões de qualidade que propunha no passado.É isso que as fotografias de Clara Azevedo e Lucia Vasconcelos mostram, em meu entender sem outra intenção que a de dar a ver o que é caracteristicamente belo e confortável nestes excelentes hotéis: o admirável soalho do Palace do Vidago, a muito decorada escadaria do Infante de Sagres, a baixela e os vinhos do Buçaco, a sala de estar do Grande Hotel do Luso, uma banheira do Astória de Coimbra, o canto de uma cama em Seteais, a vista sobre a piscina do Hotel Palácio no Estoril, o piano e a sala de jantar do Avenida Palace, o balcão de recepção ou, ainda, em citação quase mapplethorpeana, um recanto florido num quarto do Ritz.E há, quer nos motivos, quer no olhar das fotógrafas, uma evidente vontade de ver e de dar a ver que significa o desejo de partilha que abunda em todas as pessoas verdadeiramente positivas. Nesse sentido, "Splendid Isolation" é um livro feliz, a que não falta, por vezes, o subtil toque da ironia e de uma mal (ou nem sequer) disfarçada ternura. Visivelmente, as autoras adoram estes grandes hotéis. E mostram o cuidado dos que deles tratam, a sua atenção ao pormenor, o serviço do vinho e o polimento dos cromados, o fazer de cama e a decoração da mesa de jantar, o correr dos estores e o aprumo na apresentação.Nenhum "trabalho de luto", com licença do prefaciador. Pelo contrário, exaltação e alegria, num livro admirável que me faz, em catadupa, recordar momentos inesquecíveis passados em alguns desses hotéis: uma noite olímpica a discutir poesia com o Vasco Graça Moura, no Buçaco, os almoços de quarta-feira com Manuel Rino, no Avenida Palace, uma tarde de Inverno longínqua no Astória, as muitas permanências no Grande Hotel do Porto, à beira de Santa Catarina. Nostalgia? Apenas a que um suspiro pode despertar, no calor primaveril da noite lisboeta: às vezes, dava jeito levar vida de hotel. Num destes hotéis, quero eu dizer.De vez em quando (?), até parece que a esquerda é masoquista. Ora vejam:Joaquín Almunia, secretário-geral do PSOE, perdeu em 1998 as primárias para escolher o candidato do partido à chefia do Governo; apoiado no aparelho partidário (o mesmo que em tempos era a base do poder de Alfonso Guerra), fez a vida negra a Josep Borrell; lançou o descrédito sobre a "entourage" do candidato, obrigando-o a afastar-se contra a vontade da maioria dos militantes; lançou-se na campanha eleitoral, após fechar um acordo com os comunistas que ninguém percebeu para que servia, nem quem servia; das suas intervenções públicas não ficou a memória de uma só ideia ou a sedução de um sorriso. No domingo passado, sofreu a mais estrondosa derrota que os socialistas experimentaram, entregando a maioria absoluta ao PP. Demitiu-se, felizmente. Os militantes suspiram: volta Borrell, estás perdoado.Perturbado com a atmosfera de festa que, no Brasil, envolve a comemoração dos 500 anos da chegada de Cabral, o deputado bloquista Francisco Louçã suspeita que as comemorações estão entregues, no Brasil, à "direita tradicional" (com a "direita moderna" seria diferente?). Acha que o Presidente Sampaio se deixou enganar pelos cantos de sereia da tal "direita tradicional" e, por isso, anuncia que a comemoração do Bloco de Esquerda serão dois comícios com a presença de representantes dos Sem-Terra. Confunde o século XV com o século XX, obviamente; passa uma esponja sobre o facto de que o Brasil é independente há 180 anos; e tenta, à viva força, convencer-nos de que somos todos da "direita tradicional". Felizmente para nós, não é verdade. Quero eu dizer: a esquerda não é só ele...

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