Contra a presença de ciganos

O presidente da Câmara de Vila Nova de Poiares, o social-democrata Jaime Soares, afirma que só quis "evitar males maiores". Mas poucos parecem ter dúvidas sobre o teor "racista e xenófobo" de um comunicado em que o autarca apela à população para que não admita no seu seio "membros de grupos étnicos ou nómadas". Alguns poiarenses revoltam-se contra a comunicação social. A única família de etnia cigana também : "O que é que vocês querem? Por-nos fora?"

Deitadas junto a uma casa térrea de Vila Nova de Poiares, três mulheres de etnia cigana descansam sobre uma manta. À volta, duas crianças saltitam. Nenhum deles leu jornais ou ouviu rádios. Não sabem que Pedro Bacelar de Vasconcelos, membro do Observatório Europeu do Racismo e Xenofobia, pediu a perda de mandato do presidente daquela autarquia, Jaime Soares, "por incentivo a atitudes de intolerância". Não conhecem, sequer, os termos do comunicado que obrigou à intervenção do Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas. Ou seja, o texto em que o autarca apela aos poiarenses para que não admitam, no seu convívio, "membros de grupos étnicos ou nómadas que nada têm a ver com [sua] vivência". Manuela Pérola, que se encontrava a dormitar, ergue-se de um sopetão, indignada: "Outra jornalista? Mas que é que vocês querem? Por-nos fora?!". Foi em Agosto que Manuela e a família arrendaram aquela casa, no concelho de Vila Nova de Poiares, distrito de Coimbra. E desde então, garante, nunca se sentiu rejeitada por ser cigana. Não entende por isso a confusão em que de repente a família se viu envolvida. E, tal como muitos dos habitantes da vila, revolta-se contra a comunicação social. "Mas já leu o comunicado? Alguém fala em ciganos?", pergunta um homem de meia idade, num café da vila. De facto, não fala. Mas nem Pedro Bacelar de Vasconcelos como Víctor Ramos, da União Romani, têm dúvidas sobre os visados no comunicado que há mais de duas semanas se encontra afixado em cafés, na barbearia, no talho... Começando por elogiar os poiarenses, "um povo reconhecidamente ordeiro, pacífico, avesso a conflitos", Jaime Soares defende que essa "forma de estar tem de ser preservada por todos os meios". Como? É depois de se referir aos membros de "grupos étnicos e nómadas" que o autarca social-democrata - presidente daquela câmara desde 25 de Abril de 1974 - enuncia as várias medidas a tomar no sentido de "impedir a presença de indesejáveis". Nomeadamente, e assim reza o comunicado: "A venda ou aluguer de casa a pessoas que não preencham as condições de garantia de uma boa integração (...) será de rejeitar pelos males que trará (...)". Diz Jaime Soares que escreveu aquilo para evitar "males maiores". Que foi alvo de sucessivos apelos por parte de pessoas que ameaçavam subscrever abaixo-assinados ou organizar milícias para expulsar os ciganos do concelho. Que tem afilhados de etnia cigana, que apenas quis "preservar a paz social". Alguns poiarenses aplaudem-no, outros criticam-no. Mas nenhuma das pessoas contactadas pelo PÚBLICO se queixa de qualquer atitude menos correcta da única família de etnia cigana que está instalada no concelho. "Pelo contrário: quando vem aqui, paga a despesa dele e dos que aqui estão", diz o proprietário de um café em relação a João Palhinha, o patriarca da família de etnia cigana, que vive da venda de roupas em feiras. Este confirma que não tem "razões para roubar": "Amanhã ou depois entregam-me um carro de sete mil contos". E quando uma pessoa de Vila Nova de Poiares lhe pediu um fiador para realizar o contrato de arrendamento de uma segunda casa, respondeu-lhe que o fiador seria ele próprio e prontificou-se a pagar de imediato um ano de renda, ou seja 420 contos. O contrato não se realizou. João Palhinha diz que não teve nada a ver com o facto de ser cigano: "O homem desentendeu-se comigo, como já se tinha desentendido com outros da raça dele", justifica. Já vários poiarenses confessam que fizeram pressão para que o negócio não se realizasse. Há décadas que eles, os ciganos, passam por lá e nunca houve problemas, admitem. Confessam, no entanto, que "lhes faz confusão" que eles se instalem numa casa e, principalmente, que tenham tentado alugar outra. "Sabe como são os ciganos quando se juntam: num repente pegam numa faca ou numa espingarda e sabe-se lá no que isso dá...".Manuela Pérola está revoltada e insiste na pergunta: "Se não são os jornalistas, quem é que nos quer pôr fora? Se é o presidente da Câmara, o meu marido vai lá e mata-o! Nós somos educados, mas se nos pisam...", afirma, indignada. Não sabia que, no país, muitos se moviam em defesa da sua e de outras famílias de etnia cigana. Pedro Bacelar de Vasconcelos não tem dúvidas em afirmar que a câmara "fundamentou receios e incentivou atitudes descriminatórias que violam a Constituição da República". O Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas emitiu um comunicado lembrando que o incitamento à discriminação racial é, face à Constituição portuguesa, um crime punível com pena de prisão de seis meses a cinco anos. E Víctor Marques, da União Romani, promete enviar o comunicado a todas as instâncias às quais cabe punir e evitar comportamentos semelhantes, que classifica como "xenófobos e racistas".

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