O ritual do chá

Um romance notável do infatigável Cees Nooteboom, poeta, ficcionista e holandês errante. "Rituais" é uma das suas mais emblemáticas e premiadas obras.

A literatura de língua neerlandesa - a que é produzida nos Países Baixos do Norte e na parte flamenga da Bélgica - possui na Europa um estatuto periférico, não por ausência qualitativa de escritores, mas pela circunstância de ser escrita num idioma minoritário. Esta realidade, que a literatura portuguesa também vive, contribui para o relativo desconhecimento que ainda hoje a acompanha. Nos últimos anos algo se alterou. Entre nós, foram publicados romances de Cees Nooteboom, Hugo Claus, Gerrit Komrij, Margriet de Moor, Adriaan van Dis, Connie Palmen ou Marga Minco. E no domínio da poesia duas antologias vieram a lume: "Um Mundo Claro, um Dia Escuro" ( Ed. Limiar), em tradução de Augusto Willensen e Egipto Gonçalves e "Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte" (Assírio e Alvim), organizada por Gerrit Komrij e traduzida por Fernando Venâncio. Igualmente é de destacar um número da "Phala" dedicado a alguns poetas neerlandeses. Do romancista, poeta, contista e infatigável viajante holandês Cees Nooteboom acaba de sair na Asa uma das suas mais emblemáticos e premiadas obras, "Rituais". Este autor, nascido em Haia, em 1933, e que desde os vinte anos publica regularmente textos sobre viagens, reparte o seu tempo entre a Alemanha, Holanda e Espanha, três países com os quais mantém uma estreita relação. Tradutor de Pablo Neruda, Cesare Pavese e Ted Hughes, Nooteboom viu em 1993 ser atribuído ao livro "A História Seguinte" (Quetzal), - o fascinante relato de um homem que acorda num quarto em Lisboa e cuja última memória é a de ter adormecido na cama do seu apartamento solitário em Amesterdão - o prémio Europeu de Literatura. Todos os anos o seu nome surge nas listas para o Nobel. O leitor português pode ainda ler deste escritor a novela "Máscara de Neve. Uma história de amor" (Quetzal), enquanto aguarda a publicação na Asa da sua obra "De Omweg naar Santiago", um périplo por Espanha e "De Ontvoering van Europa", livro que a Relógio d'Àgua dará ainda este ano à estampa. Organizado em três tempos distintos - as décadas de 50, 60 e 70 - "Rituais" é um romance de formação. Nele, acompanhamos o percurso de Inni Wintrop, alguém que em certos dias pensava que o "mundo era um absurdo que de preferência teria de ser enfrentado com indiferença porque de outra maneira a vida tornar-se-ia completamente insuportável." O livro inicia-se com o suicídio falhado deste personagem. Logo sabemos que a relação com a sua mulher Zita tinha corrido mal "apenas porque Inni não gostava de si próprio". No momento em que a mulher se apaixona por um fotógrafo, o caos instaura-se na sua vida. "É noite cerrada quando chega a casa. Grita o nome dela pela casa vazia e continua aos gritos até os vizinhos telefonarem a mandá-lo calar." De natureza camaleónica (tal o poeta, segundo Keats), Inni considerava a nudez de um corpo o único milagre capaz de esconjurar a dor, a morte, a cegueira e o cancro. Como outros dedicam culto ao dinheiro, a sua vida era uma "obra de adoração e de tributo às mulheres". Quando conheceu Petra: "Sobre esta pedra, esta pedra macia e arredondada, pensou mais tarde, edificou a sua igreja. Porque não havia dúvida: naquele dia as mulheres tornaram-se a sua religião, o centro, a essência de tudo, a grande roda sobre a qual o mundo girava." Com ela, deitados num bosque, descobre essa mistura de amor, desejo e comoção que a partir desse instante incessantemente procuraria. "Se o mundo era um enigma, então as mulheres eram a força que alimentava esse enigma pulsante, só elas tinham acesso a ele." Neste livro que reflecte sobre a importância da sexualidade, sobre o conceito de Nietzsche da "morte de deus", e em que Sartre é visível em alguma da argumentação existencial, vão ser decisivos para Inni os encontros com Arnold Taads e Philip Taads. Estes, são dois suicidados, com os quais aprende, para lá das discussões teológicas, a importância dos rituais nas vidas solitárias quando se perdeu a fé em Deus. Infindáveis e desconhecidos eram os caminhos até Arnold. "Era como se alguém tivesse marcado um encontro junto a um determinado grão de areia num deserto infindável." Com ele, Inni descobre a importância do primeiro gole de whisky, experiência comparável com a da famosa "madeléne" em Proust. "Desse modo, o whisky tornara-se a sua madeléne - o manípulo do alçapão que tem que ser levantado para a grande descida ao mundo das sombras". Esta primeira ocorrência vai ser a clave de todas as experiências posteriomente vividas, quando o tempo for de angústia e decepção. "Em cada momento importante da vida, pensou depois, devia haver um Arnold Taads, alguém que pedisse para descrever com exactidão o que sentimos, o que cheiramos, saboreamos, o que pensamos aquando da primeira angústia, da primeira humilhação..." Por seu turno, Philip era alguém que vivia sózinho, ligado a rituais japoneses, como a cerimónia do chá que tentava recriar, num tempo (os anos 70) e numa cidade (Amesterdão), inimigos da beleza que procurava nos objectos expostos nas montras dos antiquários. Lugares, fora do tempo e onde o dinheiro se misturava com algo mais nobre: "Não era o resvaladouro dos gananciosos e dos ansiosos mas o mundo silencioso de objectos que exprimiam génio e poder, onde o dinheiro vinha em último lugar, depois do conhecimento do amor, da fúria de colecionador e dos correspondentes sacrifícios e cegos absurdos." Nas últimas páginas deste notável romance assistimos a uma espécie de despedida socrática e taoísta, para a qual Philip convida Inni e o negociante de arte para tomarem chá, numa taça recentemente adquirida. Chá bebido silenciosamente, como quem bebe a vida, essa comédia de enganos.

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