Sozinhos juntos

Jon Fosse, que escreveu "Vai Vir Alguém", diz-se um minimalista. Por isso as suas palavres são breves, repetitivas, e o universo reduzido ao minimo, ao essencial. Foi o que Solveig Nordlund tentou respeitar.

Quando escreveu a peça que Solveig Nordlund agora encena, o escritor norueguês Jon Fosse não pensou em nomes próprios, não lhe interessavam. No diminuto rol das personagens, escreveu apenas "Ele", "Ela" e "O Homem". Ele, cerca de 50 anos, forte, cabelos grizalhos e olhar fugidio; Ela, uma mulher de 30, alta, grandes olhos e gestos um pouco infantis. Um homem e uma mulher que só querem estar um com o outro. Que por isso deixam a cidade e compram uma casa isolada ao pé do mar. Para que possam estar como querem: "sós juntos".Mas o título da peça que Diogo Dória e Isabel Muñoz Cardoso interpretam, e que trás pela primeira vez Jon Fosse aos palcos portugueses, deixa desde logo o sabor amargo da frustração do sonho de uma vida a dois sem interferências: "Vai Vir Alguém". E o pânico de uma chegada indesejada vai-se instalando em crescendo, desde o primeiro minuto.Diogo Dória e Isabel Cardoso estão, de mãos dadas, no quintal de uma casa muito degradada, pintura a cair e vidros partidos - que o espaço de A Capital, onde a peça estará em cena até dia 27, assume com facilidade. Ela: "Agora estamos quase na nossa casa". Ele: "A nossa casa". Ela: "Não só sós/ mas sós juntos/A nossa casa/Estaremos juntos nesta casa/ tu e eu/sós juntos". Ele: "E ninguém há-de vir". Param e ficam a olhar para a fachada da velha casa.Lá dentro, alguns móveis, poucos, antigos. Cá fora, ao fundo da falésia em cuja encosta se isola o seu refúgio, estende-se o mar, "branco e preto", como ela o vê. Ela. "Mas é um bocado diferente/não era assim que eu a tinha imaginado/Porque há-de vir alguém/isto aqui é tão isolado/que alguém há-de vir/Que longo caminho até aqui chegar/sem termos visto uma única pessoa/que longa viagem/sem termos visto uma única pessoa/apenas a estrada/E agora aqui estamos em frente a esta casa e/imagina quando ficar escuro/Imagina quando vier um temporal/quando o vento/atravessar as paredes/e imagina como estamos longe das pessoas/o escuro que será. É como se no fundo dela crescesse, pequenina, a vontade de que alguém venha, porque "não era de todos" que se queria afastar. Apenas de alguns. Alguns, um inimigo que não tem nome mas tem forma - a de corpos e presenças humanas. Aquilo de que Ele foge. Ele: "Afastámo-nos de todos outros/Afastamo-nos dos outros todos". Ela: "Mas será que nos vão deixar sós/É como se aqui estivesse alguém/Está aqui alguém". E é assim durante mais de 20 minutos. Nele o medo, o pânico, pavor da partilha. Nela o grito de socorro, a quase vontade "Há-de vir alguém, vem sempre alguém. As palavras breves de Jon Fosse (em mais uma tradução de José Maria Vieira Mendes, que recentemente recebeu tanto o prémio revelação do Instituto Português das Artes do Espectáculo como o prémio ACARTE) vão-se sucedendo, repetitivas, em diminutas variações. "Comparados com ele, os outro teatros, mesmo Beckett, encobrem-se de pesquisa verbal, de psicologia", escreveu Michel Cournot no diário "Le Monde" quando o encenador Claude Régy, no ano passado, encenou a peça em França. "O autor abre outro caminho. É como se nos equipasse com novos olhos e orelhas."Sentidos alerta para descobrir a essência do amor de Fosse: "O amor, um abismo onde o assassínio e a compaixão se misturam". O amor, uma vertigem propícia à dor. É "O Homem" (Paulo Claro) que a despoleta. Ela está no quintal e vê um homem aparecer por detrás de uma esquina. Ainda não tem 30 anos, é um homem vulgar. O neto da antiga proprietária da casa, o homem que lhes a vendeu e que "só queria ver se alguém tinha vindo". Senta-se no banco, ao lado dela. E o sonho acabou, transformado em ciúme. A dor do ciúme é insuportável. É pungente e súbita. Apunhala e asfixia. Espalha-se por todo o corpo de Diogo Dória e nada a faz regredir. "Mal chegamos/arranjas-te um amigo/Conseguiste/Eu/Desesperado/Vi como/o olhaste nos olhos/Quando pensavas/que eu não estava a ver/olhaste-o nos olhos/E eu ouvi-te/perguntar se ele vivia/longe daqui/Bem o ouvi".O texto é "uma pequenina melodia, as com muitas notas, as palavras são muito simples, mas estão entrelaçadas como a música", explica Solveig Nordlund. Ele: "Agora estás feliz. Quando é que estás a pensar telefonar-lhe?"As palavras de Fosse, como os gestos, não dizem mais que o essencial e foi o que, em "Vai Vir Alguém", a encenadora - que tem trabalhado no cinema, como realizadora, em Portugal e na Suécia - tentou respeitar. Fosse "diz que é um minimalista, por isso [nesta encenação] tudo é o minimo". Até ao fim, quando já se odeiam, embora haja uma réstia de esperança. "E como a maioria dos casais, se calhar acabam juntos", revela ainda Nordlund. Ele: "Ela não vai telefonar/Ela deve estar a voltar/E então estaremos sós/Estaremos sempre/sós juntos/estaremos/sós/um com o outro".

Sugerir correcção