Lopes-Graça e Keil revisitados

Um dos grandes monumentos da produção para piano de Lopes-Graça, na interpretação de Miguel Henriques, o charme da música de salão de Alfredo Keil por Ana Ferraz e Gabriela Canavilhas. Duas primeiras gravações para conhecer mais de perto a música portuguesa.

Os 24 Prelúdios de Lopes-Graça (1906-1994) há muito justificavam uma divulgação condigna. É impressionante como uma obra desta envergadura permaneceu tanto tempo no esquecimento. Depois da primeira audição por Helena Sá e Costa nos anos 60, os prelúdios só voltariam a ser tocados na íntegra em 1997, por Miguel Henriques, coincidindo com a edição da partitura pela Musicoteca. Daqui para a gravação foi um passo.Escritos entre 1950-55 (e revistos em 1964), os prelúdios sintetizam alguns traços da escrita pianística do autor, ao mesmo tempo que testemunham a sua progressiva aproximação às fontes populares. Neles encontramos um rico folclore imaginário, influências mais ou menos difusas de Bartók , Ravel, ou Falla, mas também a marca de uma linguagem profundamente pessoal que dá origem a um fascinante conjunto de técnicas de escrita, sentimentos e ambiências (o rústico, a introspecção, o mistério, o humor, a agressividade titânica...) e que lhe confere um lugar cimeiro na música portuguesa para piano do século XX.Miguel Henriques oferece-nos uma leitura de grande consistência, onde sobressai a correcção e a clareza técnica e que deixa transparecer uma mente analítica na transmissão da arquitectura das obras. Estas são virtudes essenciais, uma vez que nos Prelúdios de Lopes-Graça a solidez formal se sobrepõe frequentemente à liberdade de improvisação correntemente associada ao género. De realçar também o cuidado na pesquisa tímbrica, uma das grandes riquezas da colecção. Todavia, o pianista opta sistematicamente por andamentos mais lentos do que os que Lopes-Graça teria preconizado - a duração total anotada na partitura é 54'25'', a duração do disco 70'58''! Não se esperaria nem seria desejável que fosse igual. Um músico não é uma máquina, é um ser humano com pulsões e formas próprias de sentir o tempo, mas o facto de a diferença ser tão grande dá que pensar, sobretudo porque Lopes Graça anotou as indicações metronómicas. Nos casos em que a disparidade é maior não se exclui a hipótese de a peça adquirir um carácter distinto daquele que Lopes-Graça idealizou. Mas afinal de contas um dos grandes fascínios da arte consiste nas suas infinitas possibilidades de recriação.Twenty Four Preludes Miguel Henriques (piano) Strauss/Portugalsom 4216, 70'58''Conhecido apenas como o autor do hino nacional e de "A Serrana" - a única ópera portuguesa que manteve um lugar no repertório desde a estreia em 1899 -, o pintor e compositor Alfredo Keil (1850-1907) não deixa por isso de fazer parte do núcleo de personalidades do século XIX que a musicologia e os intérpretes têm votado ao esquecimento. Neste primeiro disco dedicado à sua obra, Ana Ferraz e Gabriela Canavilhas, duas excelentes intérpretes com provas dadas, transportam-nos nostalgicamente aos salões do século XIX através de três canções portuguesas (extraídas da colecção "Tojos e Rosmaninhos"), "Six Mélodies" sobre textos de Sully Prudhomme e de J. T. de Saint-Germain, e algumas peças para piano, com títulos em francês, à excepção de uma ("Fado") que, como é óbvio, contém alusões directas à música portuguesa. De uma maneira geral, a linguagem situa-se num registo quase ligeiro, mas demonstra a habilidade de escrita de Keil, tanto para a voz como para o piano. É música de grande leveza, sem pretensões profundas, de linhas melódicas sedutoras, gráceis e expressivas, por vezes até um pouco adocicadas, onde sobressai o gosto francês, mas onde se vislumbra aqui e ali a sensibilidade portuguesa. As peças instrumentais combinam a escrita brilhante da música de salão, às vezes dançante, com ecos da miniatura romântica para piano.Songs and Piano PiecesAna Ferraz (soprano)Gabriela Canavilhas (piano)Strauss/Portugalsom 4217, 61'10''

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