Catarina entre os homens

"Lucefécit" é uma peça para quem acredita em fadas, duendes, bruxas, sereias, fantasmas. Mas também para quem não acredita. O mistério ronda a próxima produção do Teatro Aberto. Só o regresso de Catarina Furtado aos palcos é uma garantia. De lotações esgotadas.

"Eu sou muito disciplinada. O meu encenador pediu-me para não dizer nada. E eu cumpro. Por acaso, acho que neste caso ele tem toda a razão. É bom que não se saiba." Catarina Furtado pisa o palco do Teatro Aberto, em Lisboa, pela segunda vez, no próximo mês, depois das lotações esgotadas de "Quase", a sua estreia em teatro, no ano passado. Relembrem-se os factos: a apresentadora do "Chuva de Estrelas" abandonou a televisão durante quase três anos e seguiu rumo a Londres para fazer um curso de Teatro e Cinema - "duríssimo" -, onde privou de perto com o inglês vernacular de Shakespeare, ao mesmo tempo que seguia as instruções de uns professores americanos do famosíssimo Actors Studio. "Para contrabalançar com o teatro clássico e extremamente exigente que os ingleses têm", explica. De regresso a Portugal, e depois de algumas experiências de cinema, nomeadamente em "Pesadelo Cor-de-Rosa", de Fernando Fragata, onde contracenava com Diogo Infante - "um prolongamento de mim" -, fez o "casting" para "Quase", de Patrick Marber, com mais oito actrizes e acabou por conseguir o papel de Alice, uma "stripper" desiludida com o amor. Resultado: lotações esgotadas ao longo de dois meses e meio e críticas rendidas à prestação da mais mediática actriz em princípio de carreira. "As críticas foram todas óptimas, nem acreditava no que me estava a acontecer. Eu sabia que era justo porque eu trabalhei muito, o João [Lourenço] trabalhou muito, todos trabalhámos imenso", assegura.O rosto de Catarina Furtado cobre agora a fachada do Teatro Aberto, reproduzido no cartaz que anuncia "Lucefécit", encenação de João Lourenço a partir da peça de Conor McPherson, de quem já apresentou "Água Salgada".Sabe-se pouco sobre "Lucefécit". Únicas referências: "The Weir" (título original) arrecadou o mais prestigiado dos galardões do teatro britânico no ano passado, ocupou uma sala londrina durante ano e meio, fez escala na Broadway e foi responsável pela aclamação do seu jovem autor de 28 anos como o melhor dramaturgo irlandês dos anos 90. A peça é centrada no encontro de cinco personagens - quatro homens e uma mulher - num remoto pub da Irlanda rural, que João Lourenço e Vera San Payo de Lemos transferiram para um cenário português. "O engraçado disto tudo é também a adaptação da Vera e do João. Aquilo é passado num pub irlandês e há uma barragem... Por isso é que a peça se chama 'The Weir', que é o nome de uma barragem. Mas também tem a ver com 'weird', de esquisito, de coisas que não se sabem muito bem explicar. O João e a Vera tentaram arranjar o sinónimo disso aqui e foram ao Alentejo, encontraram uma barragem que se chama Lucefécit. Ali à volta faz todo o sentido que esta história exista", diz Catarina Furtado. E que história é essa? Num café de uma pequena vila alentejana, quatro homens solitários, que se costumam reunir ali à noite para conversar, beber e assim espantar os fantasmas da solidão, contam histórias fantásticas, ocorridas na região, para impressionar uma jovem desconhecida chegada de Lisboa - Vânia, a personagem de Catarina. "Ela vem morar para o Alentejo com a pessoa que lhe aluga a casa, entra no café e há um desenrolar de histórias, cada um conta a sua história." A narração de acontecimentos misteriosos mistura-se com a confissão de vivências muito pessoais, criando um ambiente intimista que envolve não apenas as personagens em cena, mas também os espectadores, garantem os responsáveis do Teatro Aberto. "A peça tem um lado misterioso, aquelas coisas que as pessoas não sabem muito bem explicar mas sentem. Aqui os elementos reais são misturados, baralhados e acrescentados pelo lado místico, pelo que não se explica." Uma história de fantasmas, portanto? "E de pessoas. Porque eles não existiam sem as pessoas", responde Catarina Furtado. A acompanhá-la estarão António Cordeiro - Fernando, "o tipo que tem mais dinheiro, mais contacto com a cidade" -, Francisco Pestana - José, "boa pessoa, um querido que toma conta da mãe" -, José Boavida - Bruno, o dono do café - e Luís Alberto, que deixou o Teatro da Malaposta depois da demissão do encenador José Peixoto - Jaime, "o mais velho de todos, um tipo que trabalha numa garagem"."Eu chamei-a para este papel", diz João Lourenço. "Gostava de a experimentar noutro tipo de teatro." Se o papel de estreia de Catarina Furtado foi um duro exercício de exposição - "Tive que virar a minha vida do avesso" -, a Vânia de "Lucefécit" implica um movimento centrípeto, de viragem para o interior. "Em 'Quase' atirei-me. Estava muito exposta a todos os níveis. Neste, a exposição tem a ver com o grau emocional. É a minha segunda peça, fiz alguns filmes, nada mais. Tenho muito pouca técnica. Não tenho ainda aqueles truques de carregar no estômago, que são normais, com o tempo os actores vão tendo truques que funcionam. Eu ainda não tenho nada disso, portanto, todas as minhas emoções podem ser trabalhadas. Neste sentido, a peça é muito dura para mim, porque é um puxar da emoção, é uma violência e como não tenho nenhuma dessas defesas sofro ali", afirma. Apesar da experiência adquirida em "Quase", garante que ainda se sente insegura quando sobe ao palco. "Vou roubar uma coisa que me disse o meu colega, Luís Alberto, que é um actor extraordinário: 'Estás a ver, Catarina, estou aqui a tremer por todos os lados, numa ansiedade enorme, cheio de receios e de medo e tenho sei lá quantos anos de teatro...' E é divertido que isso aconteça - porque é que de peça para peça não temos mais segurança? Porque não podemos ter. Se levarmos isto a sério, não podemos ter segurança porque cada projecto é novo." Ainda para mais, ela, diz, tem que "provar o triplo": "Infelizmente, neste país é um bocado assim. Há um lado de maldade que muitas vezes acontece porque sou apresentadora de televisão. Como acontece com os manequins... Mas eu não levo isto a brincar, eu não acordei um dia e pensei: 'Que tal ser actriz? Deve ser giro ser como a Sharon Stone...' Não foi nada disso. Tomei uma decisão muito séria na minha vida que foi afastar-me de tudo o que era televisão e fácil para mim, para estar quase três anos numa cidade que não conhecia a fazer um curso dificílimo, porque era isto que eu queria. Levo muito a sério isto. Na altura do "Quase", até pesadelos tinha de pensar que eram olhos gigantes na plateia a pensar: 'Vamos dizer mal...'" Não disseram, como se viu."Como é que é lá fora? Elas cantam, dançam, pulam, apresentam, representam... E porque é que não há-de ser assim? Gosto tanto de fazer tantas coisas. Gosto muito de apresentar programas se o programa tiver a ver comigo." Por isso mesmo, para além das pontuais galas - Globos de Ouro da SIC - que apresenta, Catarina Furtado irá aparecer no pequeno ecrã num telefilme do Luís Galvão Teles, "A Noiva", e mais uma vez à frente do programa "Pequenos e Terríveis", no final do ano."Estou a fazer televisão há quase dez anos e o sabor de um elogio no teatro vale mais do que o que me disserem em televisão", diz. "Nunca sonhei ser apresentadora de televisão. Eu achava que era bailarina, depois achava que era jornalista porque tirei o curso de jornalismo. As coisas em televisão aconteceram um bocado por acaso. Não era um sonho. Correu bem porque sou muito eu própria, acho eu. Um bocadinho embrulhada: em luzes, maquilhagem, vestidos, etc. Mas não deixo de ser eu própria. Aqui é uma prova de fogo maior."

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