Caso Beleza chegou ao fim

O Tribunal Constitucional (TC) discordou do Tribunal da Relação, ao considerar prescrito o "crime de propagação de doença infecciosa com dolo eventual" de que Leonor Beleza, a mãe e mais oito arguidos tinham sido acusados. O recurso para o TC foi apresentado pelos outros oito arguidos e beneficiou a ex-ministra. Mas esta não admite estar satisfeita, e afirma que queria ser declarada inocente.

O acórdão do Tribunal Constitucional (TC) determina na prática a prescrição do processo do sangue contaminado pelo vírus da sida, no qual eram arguidas Leonor Beleza, sua mãe, Maria dos Prazeres Beleza (ver PÚBLICO de ontem), e mais oito pessoas. O processo vai ainda descer ao Tribunal da Relação de Lisboa que terá de pronunciar-se sobre a aplicação da doutrina do TC ao caso concreto mas a sua opinião terá de acolher a decisão dos juízes do Palácio Ratton. Ontem, as opiniões de juristas ouvidos pelo PÚBLICO e por outros orgãos de comunicação social são unânimes: o processo está prescrito. Ricardo Sá Fernandes, advogado de Maria dos Prazeres Beleza, e o bastonário da Ordem dos Advogados, Pires de Lima, entrevistado pela SIC, são unânimes ao considerar que esta decisão evita o julgamento.O TC pronunciou-se no acordão 122/200 em resposta ao recurso apresentado pelo oito arguidos - menos Leonor Beleza e sua mãe, Maria dos Prazeres Beleza -, todos eles funcionários do Ministério da Saúde (MS). O recurso fundamentava-se na alegação de que o interrogatório pelo juiz de instrução criminal, que ocorreu em 1995/96, não tinha interrompido o prazo de prescrição do processo, que é de dez anos contados a partir da data dos factos que lhe deram origem. O TC, analisando o direito aplicável a este caso, decidiu julgar inconstitucional a norma segundo a qual "a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução". Ou seja, o TC considerou que não há qualquer interrupção do prazo de contagem do tempo para a prescrição do processo, que é de dez anos.Os factos - a utilização, pelos serviços do MS, de um lote de plasma suspeito de contaminação pelo vírus da sida, oriundo do laboratório austríaco Plasmapharm - ocorreram entre Junho de 1986 e Fevereiro de 1987, quando Leonor Beleza era a titular da pasta da Saúde e a sua mãe a secretária-geral do ministério. Todos os restantes arguidos eram, na época, funcionários superiores do MS.Acusados pelo Ministério Público do "crime de propagação de doença infecciosa com dolo eventual"- dezenas de pessoas foram contaminadas pelo vírus da sida em consequência da utilização daquele lote de plasma, e várias morreram -, os dez réus do caso do sangue contaminado viram a acusação confirmada em 18 de Novembro de 1998 por um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Leonor Beleza e a mãe recorreram da sentença para o TC, alegando que o Tribunal da Relação desrespeitara o princípio constitucional da presunção da inocência. Mas, num acórdão de Novembro passado, o TC não lhes deu razão.Desfecho oposto teve o recurso dos outros oito arguidos que a defesa decidiu apresentar ao TC com outro fundamento, o de que o processo prescrevera por terem passado mais de dez anos sobre os factos. O TC concordou desta vez, contrariando assim outro acórdão do Tribunal da Relação que, em 18 de Novembro de 1998, recusara dar o processo como prescrito. No seu acórdão dessa altura, a Relação considerara taxativamente que "a prescrição do procedimento criminal se interrompe" com a notificação para as primeiras declarações dos arguido, na instrução, "visto esta fase processual ser dirigida por um juiz". Os arguidos foram interrogados em instrução entre 26 de Abril de 1995 e 25 de Novembro de 1996 pelo que, no entendimento do Tribunal da Relação, se deveria recomeçar a contar o prazo da prescrição a partir dessa data.Para o TC, segundo o seu acórdão de ontem, a que o PÚBLICO teve acesso, pelo contrário, "não ocorreu qualquer interrupção do prazo da prescrição do procedimento criminal", sendo "inconstitucional" a interpretação da norma do Código de Processo Penal segundo a qual "a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução". Neste jogo de subtilezas jurídicas estiveram as diferentes interpretações que pode ter o termo "instrução" à luz do Código de Processo Penal, de 1929, e do novo, de 1987.Leonor Beleza, agora livre de acusações, afirmava ontem à SIC que "este é um processo por que nunca me bati". "Tenho a certeza de que seria ilibada, se fosse a julgamento", garantiu a ex-ministra da Saúde, que sublinhou: "Não fiz nada que pudesse conduzir à prescrição do processo" e "não me considero beneficiada por esta decisão".Quem não está conformada com este desfecho é Maria de Lurdes Fonseca, presidente da Associação Portuguesa de Hemofílicos, a entidade que, em 1986, avisou o MS pedindo análises ao plasma suspeito e que denunciou o caso do sangue contaminado à Procuradoria Geral da República, em 1992. Referindo-se a Leonor Beleza e à mãe, Maria de Lurdes Fonseca afirmou ontem, também à SIC, que ficarão "com um estigma para toda a vida".

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