Uma festa para Bach

Um cravo-alaúde? Exactamente: um cravo com som de alaúde, tal como se usava no tempo de Bach, tocado por Kenneth Gilbert, foi a grande revelação, até para cravistas, do primeiro dia de "La Folle Journée", o festival de Nantes inteiramente dedicado à música do grande compositor. Gilbert deverá trazer o raro instrumento ao CCB, em Abril, na Festa da Música. Mas em Nantes há muito mais para ouvir, música a todas as horas com mais de 90 mil bilhetes vendidos.

São 11h da manhã de sexta-feira e o magnífico espaço da Cité des Congrés, em Nantes, fervilha de animação. Há filas para entrar nas salas e auditórios, pessoas de todas as idades que circulam em várias direcções. É a abertura de mais uma edição de "La Folle Journée", um festival de música que pretende "romper com o ritual imobilizado do concerto tradicional e favorecer a formação de um público novo." J. S. Bach, falecido há 250 anos, é o herói desta edição. Durante três dias, a obra do grande Kantor de Leipzig é interpretada quase na totalidade, por músicos de primeiro plano, em cerca de 200 concertos, que se distribuem por sete salas a funcionar em simultâneo entre as 9h e as 24 h! Cada concerto dura em média 50 minutos (com a excepção das obras maiores como as Paixões ou a Missa em Si menor) e o público pode organizar o seu próprio itinerário, devido aos preços acessíveis dos bilhetes. O sonho de Renè Martin, autor deste projecto monumental, tornou-se realidade. Desde a sua primeira edição, em 1995, "La Folle Journée" é um sucesso. Ontem dizia-se que tinham sido vendidos 90 mil bilhetes!A grande surpresa é que a equipa de René Martin está neste momento a colaborar com o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para pôr de pé uma iniciativa semelhante, agendada para 29 e 30 de Abril. A fórmula não funciona nas cidades "onde já tudo aconteceu". Por isso René Martin tem recusado várias propostas. Lisboa pareceu-lhe ideal. O evento vai chamar-se Festa da Música e neste primeiro ano será também dedicado a J. S. Bach. A avaliar pelo que o PÚBLICO presenciou em Nantes é de ficar com água na boca.Os 200 lugares da sala Froberger - todos os auditórios têm nomes de compositores que foram importantes para Bach - estão quase todos preenchidos e o público aguarda que o cravista Kenneth Gilbert surja em palco. O recital tem uma curiosidade acrescida: vai ser utilizado um cravo-alaúde, instrumento quase desconhecido actualmente, mas pelo qual "Bach tinha uma imensa atracção." Gilbert começa por tocar o 1º Prelúdio do Cravo bem Temperado, o que causa uma certa perplexidade - o programa mencionava a Suite Francesa nº1 e a Partita nº4 -, mas depois do último acorde, o cravista explica que a sua intenção foi a de familiarizar o público com o timbre particular deste instrumento. Trata-se de um cravo que imita o som do alaúde porque as cordas são de tripa e não de metal, o que cria uma atmosfera diferente, em especial nas peças lentas. O som é mais doce, menos metálico, mais íntimo... "Foi num cravo semelhante a este que Bach compôs algumas das suas obras, como a Partita nº4, em Ré Maior. Não sobreviveu nenhum até à actualidade. Este foi construído na Pensilvânia [por Willaert Martin] com base em documentos da época e é o único que existe na Europa," explica Gilbert. No final do recital, já depois de o cravista se ter retirado foi ver uma correria em direcção ao palco para observar de perto o misterioso instrumento, em que a deliciosa Gavotte da Suite Francesa nº 1 soou de uma forma quase mágica e que serviu de suporte a uma esplêndida leitura da Partita. Quando se apresentar em Portugal, na Festa da Música, Gilbert levará este instrumento com ele, com o qual pretende vir a realizar uma gravação em 2001, "para que Bach não se esgote em 2000". E o que acha da "Folle Journée"? "Uma maravilha, mas muito frustrante, porque é impossível assistir a todos os concertos!"A opinião de Kenneth Gilbert é partilhada por muitos. Enquanto decorria o seu recital, Olivier Vernet - que acabou de gravar com estrondoso sucesso a integral da obra para órgão de Bach - inaugurava o soberbo órgão do Auditório Buxtheude (o maior da Cité des Congrés, com lugar para 2000 pessoas). Noutras salas era possível ouvir os pianistas Josep Colom (que também virá a Portugal) e Anne Queffélec tocar transcrições dos Brandeburgueses para dois pianos, Suites e Partitas por Gérard Poulet (violino) e Marc Coppey (violoncelo), Prelúdios e Fugas do Cravo Bem Temperado por Blandine Verlet, Suites Orquestrais pelos Armonico Tributo Austria ou as Sonatas para Viola da Gamba pelo argentino Juan Manuel Quintana, outra presença no CCB.Até domingo, será possível ouvir Bach de todas as formas e feitios. Há para todos os gostos. Como seria de esperar, a maior parte das formações usam instrumentos da época, mas também é possível ouvir Bach em piano (quer as obras originais, quer as transcrições de compositores como Busoni) ou por grupos que tocam em instrumentos modernos como o Quarteto Ysaye ou o Collegium Instrumentale Brugense (dirigido por Patrick Peire), agrupamentos que também participarão na Festa da Música. Este último apresentou ontem, com o pianista Jean-François Heisser, uma excelente leitura do Concerto em Ré menor, BWV 1052, em que Bach soou de uma forma perfeitamente idiomática. A versão de Koopman e da Amesterdam Baroque Orchestra permitirá certamente um delicioso contraponto.A diversidade de presenças permite também comparar diferentes gerações de intérpretes (por exemplo Anner Bylsma e Peter Wiespelwey no violoncelo), ouvir mestres e discípulos (como os violinistas Sigiswald Kuijkian e Chiara Banchini) e interpretações. Há obras especialmente privilegiadas como as Variações Goldberg, que serão objecto de 10 leituras diferentes (seis em cravo, duas em piano e duas por trios de cordas), com nomes como Pierre Hantai, Blandine Verlet, Davitt Moroney, Kenneth Weiss ou Zhu Xiao Mei.E porque Bach resiste a tudo foi mesmo possível ouvir a sua música pelo simpático Grupo de Percussão do Conservatório de Nantes, no "Grande Halle de Leipzig". Este é o nome com o qual foi baptizado o enorme átrio principal da Cité des Congrès, onde estão montados diversos postos de venda de livros, partituras, revistas e discos e onde se encontram representadas várias instituições de Nantes. Como é uma zona de passagem, os transeuntes vão sempre recebendo uns ecos do que se passa no seu palco central. Quando o que ouvem lhes agrada e os lugares já estão todos ocupados, qualquer sítio serve para se sentarem - até nas escadas rolantes, que entretanto deixaram de funcionar... O ambiente que se vive aqui contrasta radicalmente com o recolhimento das restantes salas e auditórios, onde o silêncio é sagrado.O único intérprete português presente na "Folle Journée" é o pianista Pedro Burmester, que actua hoje, às 14h15 na Sala Telemann. Mas a grande atracção do dia é a Paixão Segundo São Mateus pelos Gabrielli Consort and Players, de Paul MacCreesch. Repete-se também a Missa em Si menor, sob a direcção de Philippe Herreweghe (outro dos pontos fortes) e o Magnificat, sob a direcção de Michel Laplénie. Entre dezenas de propostas, é de referir também os Concertos Brandeburgueses nºs 1, 3 e 5, pela pioneira Petite Bande, de Sigiswald Kuijken, mais uma presença que aguardamos em Lisboa. A interpretação dos nºs 2, 4 e 6, ontem à tarde, conta-se entre os melhores concertos a que o PÚBLICO assistiu.É de facto uma jornada louca, mas ninguém parece cansar-se. A música de Bach é uma energia em constante renovação e este é talvez dos poucos compositores que se pode ouvir repetidamente com a mesma frescura. Mas há muito mais coisas para fazer na "Folle Journée": assistir a conferências e mesas-redondas com musicólogos e críticos ou ver filmes sobre o compositor e os seus intérpretes. Face ao êxito de Nantes resta-nos esperar com a maior expectativa o que irá acontecer no CCB.

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