Crime público, dizem elas

A Assembleia da República aprovou a 13 de Janeiro um outro enquadramento jurídico para a violência doméstica contra as mulheres - o de crime público.O projecto de lei do Bloco de Esquerda apresentado em Novembro do ano passado motivou o debate e a participação de outras forças políticas. A vida demonstrou - e o poder político teve de se confrontar com isso - a falência do carácter de crime semi-público em que dependia da mulher vítima de maus tratos o avanço do processo em tribunal.A esmagadora maioria das mulheres que se dirige às escassas linhas de atendimento público de vítimas de violência doméstica não apresenta queixas à polícia e quando o faz desiste passado pouco tempo. As causas desta desistência das mulheres situam-se a vários níveis: na dependência face ao agressor, económica e emocional, na falta de saídas para reorganização de vida mas, muito especialmente, pelo medo de represálias e falta de confiança na eficácia da intervenção das autoridades.Que beneficio pode trazer para as mulheres o estatuto legal de crime público na violência doméstica contra as mulheres? Alivia a vítima da pressão do agressor, porque não é necessariamente ela que apresenta a queixa. Surge com um efeito dissuasor, porque a sociedade passa a poder intervir e o avanço do processo deixa de depender da força do agressor sobre a vítima. Sabemos que a capacidade de decisão de uma mulher sistematicamente agredida física e/ou psicologicamente é muito limitada. Recordemos as mulheres que chegam aos hospitais com os corpos macerados de pancadas e que dizem que caíram das escadas abaixo. Mas será que a sociedade deve intervir nestes casos? Não está a intrometer-se no que não deve? Essa é a visão que tem justificado que um homem violente uma mulher dentro das quatro paredes da casa, porque dentro de casa "é ele quem manda" e "entre marido e mulher que ninguém meta a colher". Mas se o mesmo homem agredir a sua mulher na via pública e ela for hospitalizada, o crime deixa de necessitar de queixa da mulher. Quem alude a medidas de totalitarismo quando se fala em crime público está a ver a realidade de pernas para o ar e a agir decerto com base em algum preconceito. Considerar a violência doméstica como crime público significa defender a dignidade das pessoas. Procura ainda que, em situações sociais de vida muito difíceis, as mulheres consigam libertar-se de violências acrescidas. Quando um número crescente de instituições internacionais considera os maus tratos sobre as mulheres na família (assim como contra as crianças e os idosos) um atentado aos direitos humanos é de todo pertinente a alteração ao código penal aprovada na Assembleia da República.Muito se tem especulado com a introdução no projecto de lei do PCP, aliás e justamente também aprovado, de uma norma de suspensão provisória do processo por parte da vítima. Na realidade, essa norma levanta dificuldades técnicas e processuais. E não se veja nesta norma a solução para reconciliações familiares, (que em situações de violência sistemática raramente ocorrem) na medida em que coloca nas mãos dos juízes a decisão de avançar ou não com os processos em tribunal.A iniciativa do Bloco de Esquerda constitui um passo em frente na forma de encarar a violência doméstica contra as mulheres. Uma forma de vir a accionar outros mecanismos essenciais, alguns já previstos mas não implementados: o reforço da possibilidade legal de afastamento do agressor de casa, as linhas de atendimento, as casas abrigo, a formação de magistrados e agentes de autoridade, o apoio às ONGs que trabalham nesta área, entre outros. Trata-se também, e não menos importante, de contribuir para a alteração das mentalidades que perpetuam a visão ancestral da mulher como subalterna do homem.*Assessora do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda

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