Nomes de guerra

Número duplo da "Colóquio/Letras" soberanamente dedicado a Almada e a Mário de Andrade. Mais do que consagrado a, consagrado pelos dois nomes de guerra do modernismo lusófono. Não desfazendo os autores dos textos da revista, que são muitos e bons.

"Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. / Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido. / No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se." Estas palavras de Almada Negreiros em "A Invenção do Dia Claro" (conferência primeiro, em 1921, depois editada pela infeliz Olisipo de Fernando Pessoa, no mesmo ano) deviam figurar em letras bem visíveis (e não em rodapé manhoso como os preços reais na publicidade) em todas as campanhas de "incentivo à leitura". Para purgar o terrorismo comercial das ditas. A impúdica hipocrisia política que lhes subjaz. Enfim: por causa da moral (à entrada das livrarias e de outros "postos de venda" de livros não ficavam mal as palavras que Dante pôs à porta do inferno). Também se poderia distribuir gratuitamente - com o programa nacional de vacinação, por exemplo (sendo lícito presumir que são incuráveis os cidadãos de maior idade que já desataram a produzir "tanto texto quanto é necessário para um livro de venda") - o "Prefácio ao livro de qualquer poeta" ("Há-os que levaram a ciência dos versos e a persistência de os fazer tão longe da Poesia que ficaram os autores dos seus próprios funerais.", etc., etc..). Tão cultor dos "outdoors", o município lisboeta poderia dar uma ajuda. E o presidente da câmara que o fizesse (ou seja: que imprimisse civicamente estas e outras palavras de Almada, para "incentivo" dos naturais e dos estrangeiros e, num mesmo gesto poético, tirasse os carros e a merda dos cães e dos seus donos dos passeios) aconchegava o seu lugar na história e, o que é mais, executava um acto político de reais e prestimosas consequências sociais (coisa que sem dúvida não pode estar fora do âmbito das suas competências e atribuições).Mas nós desconfiamos que Almada, um dos poucos portugueses maiores do que o século que findou ou há-de findar, já foi posto ao serviço dos programas escolares de incentivo à tortura literária e da enfadonha grosseria da indústria das dissertações académicas. Ora acontece (e onde é que teremos ouvido isto?) que a revista "Colóquio/Letras" acaba de publicar um número duplo (149/150) soberanamente dedicado (são quase 400 páginas) a Almada e a Mário de Andrade. E nem sequer tem o álibi de qualquer centenário: tendo nascido ambos em 1893, o brasileiro morreu em 1945 e o português em 1970. Mas retomando Almada: "Todos os dias faz anos que foram inventadas as palavras. / É preciso festejar todos os dias o centenário das palavras." Mais do que consagrado a, é um número consagrado pelos dois nomes de guerra do modernismo lusófono (desculpem o palavrão). Não desfazendo os autores dos textos da revista, que são muitos e bons.Vamos dar meros exemplos. Gustavo Rubim diz apenas isto (entre outras coisas): "Poesia e Criação", uma conferência lida por Almada em 1962, é "sem dúvida dos mais notáveis textos de poética do século XX (pelo menos em língua portuguesa)"; para os que valorizam a literatura encarada como uma corrida para ver quem é que chega primeiro ao esquecimento, avisamos que Osvaldo Manuel Silvestre lembra, a propósito do sensacionista "K4 O Quadrado Azul" (1917), "a espantosa imagem do corpo que aqui nos é dada, e que na sua radicalidade só voltaria a visitar a nossa literatura nos anos 60, na obra de Luiza Neto Jorge e, mais recentemente, nos textos dificilmente classificáveis de Luís Miguel Nava" (e nós lembramos - com Maria Antónia Reis, que prefaciou "Contos e Novelas", quarto volume das "Obras Completas" de Almada na edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda - que já Ernesto de Sousa disse que "A Engomadeira", escrita em 1915, publicada em 1917, é "a primeira - talvez a única - obra-prima do surrealismo português"); Fernando Cabral Martins lê claramente "A Invenção do Dia Claro", no contexto de uma noção "central na poética do Modernismo": a teatralidade; Álvaro Cardoso Gomes escreve sobre "um experimento absolutamente inovador", "impossível de ser imitado": o romance "Nome de Guerra" (a propósito, relembre-se de Almada um aforismo, ou o que se lhe quiser chamar, que não desgostaria Mário de Andrade: "A cópia fiel ainda é a melhor passagem para o original."); Ellen W. Sapega ensaia uma aproximação do autor de "A Cena do Ódio" ao autor de "Ode ao Burguês", de "Paulicéia Desvairada" e do luxuriante e também inimitável "Macunaíma" (na altura, as "pontes lusófonas" não estavam mais transitáveis do que hoje, apesar do carácter igualmente periférico dos "dois" modernismos); sobre Mário de Andrade vários autores tratam depois de mostrar por que é que ele parece "recusar a síntese e apelar à pluralidade", como diz João Alexandre Barbosa. Se o que ficou dito chegar para chamar a atenção (merecida e útil) para este número de "Colóquio/Letras" e, mais importante e produtivo, se a revista da Fundação Gulbenkian conseguir contribuir para repor em circulação os textos de Almada e de Mário de Andrade, terá valido a pena o aranzel (sem fantasias rousseaunianas).Acresce que tudo isto é dado a ler com o aparato gráfico que (felizmente) passou a caracterizar a "Colóquio/Letras" na sua fase mais recente e que vai particularmente bem com o tema deste número: compare-se a alegria de invenção gráfica da generalidade das edições modernistas (as capas de algumas das quais são aqui reproduzidas) com a incompetente e menosprezadora tristeza hoje corrente na edição portuguesa. Não se trata de sobrevalorizar o embrulho, mas de valorizar a sensualidade que estas coisas podem ter. E a sensualidade pode ser uma bela maneira de uma pessoa se salvar.

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