Um clube privado no Chiado

Fundado em 1846, por nomes ligados ao liberalismo português, como Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, entre o seus sócios contou com o nome emblemático de Eça de Queirós. Hoje, passados 154 anos, o Grémio Literário - mais do que um espaço cultural - é um clube privado. Mas depois das obras do Metropolitano de Lisboa encontra-se com problemas graves na estrutura do seu edifício.

À entrada, na Rua Ivens, 37, em pleno coração do Chiado, dois funcionários abrem a porta e saúdam gentilmente quem pretender entrar no Grémio Literário (GL). O silêncio, só cortado por algumas conversas que se ouvem ao longe, parece ser uma regra de ouro. A outra é que se não for sócio - ou não for convidado por um dos seus membros - pura e simplesmente não pode entrar...Criado nos conflituosos dias de 1846, mais precisamente nas vésperas da revolta minhota da Maria da Fonte, por algumas das figuras mais carismáticas do liberalismo português, como Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, o GL começou por viver os tempos agitados da época. Quando Costa Cabral apresentou às Cortes o projecto de uma nova lei de imprensa - conhecida como a Lei da Rolha - foi do GL que partiu, através de um texto redigido por Garrett e Herculano, os protestos contra o diploma.Na vida do GL, hoje com 154 anos de história, este episódio é um acidente de percurso. Gizado como um espaço para a propagação da cultura, de contornos iluministas e filantrópicos típicos do século XIX, desde muito cedo que o GL abre as suas portas a curso sobre temas tão diversos como higiene, filosofia, literatura, história, belas artes, astronomia ou agricultura - uma actividade subjacente ao que está inscrito no primeiro artigo dos seus estatutos: "O Grémio Literário é a reunião de todos os indivíduos de conhecido mérito em qualquer ramo da ciência, literatura ou belas artes, que forem admitidos." A admissão, que ao longo do tempo foi sendo menos burocrática, teria de contar, ainda de acordo com os estatutos, com onze votos a favor dos treze que compunham o Conselho de Admissão.Actualmente, o que é preciso para se ser sócio? Para Gerald Salles Lane, 71 anos, presidente do Conselho Director do GL há 12 anos, "ter bom nome, não no sentido aristocrático do termo, mas estar bem com a sociedade, ser considerado pelas pessoas em geral". A decisão final é do Conselho Director, que avalia o perfil de sócio, constituído por doze vogais, eleitos anualmente pela assembleia-geral de sócios. "O estatuto do GL - explica Salles Lane - é o de um clube, cujo fundamento é o seu carácter exclusivo: isto é, só pode ser frequentado por pessoas que são sócios do grémio ou convidados destes. Perguntar se existe alguma ideia de o abrir ao grande público é uma questão difícil senão mesmo impossível de responder. O GL é fechado, tem um público exclusivo."O GL conta actualmente 1200 sócios, dos quais apenas 80 são mulheres. Pagam uma quota que anda à volta de 50 contos ano a que se tem que juntar uma jóia de 300 contos. Porém, no início deste ano a direcção do clube decidiu abrir o GL aos filhos dos sócios que, para usufruir dos magníficos espaços do clube, (ver caixa) só terão de pagar a quota.Contando com um orçamento anual na ordem dos 70 mil contos e a braços com o encerramento do ginásio devido às obras do alargamento da rede do Metropolitano (ver caixa), uma parte substancial das receitas do GL são oriundas, além do pagamento das quotas, do serviço de restaurante. Também ele privado a sócios, ou aos seus convidados, mas que conta com uma frequência "bastante significativa", nas palavras de Salles Lane. A natureza privada do GL não parece preocupar os sócios - entre os quais se encontram nomes como Mário Soares, Jorge Sampaio, Ernâni Lopes, Jacinto Simões ou Agustina Bessa-Luís. É o caso do Luís Santos Ferro, 60 anos, director da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Tendo entrado para o clube em 1972, por razões puramente literárias já que é um indefectível queirosiano - Eça foi sócio do clube e fez do espaço uma das suas referências romanescas - Santos Ferro pensa que o GL "devia fazer mais 'marketing' para ter mais sócios". Mas em contrapartida não acha que se deva abrir ao grande público pela própria natureza clube. "A abertura ao grande público só se justifica em casos excepcionais com o perigo de deixar de ser aquilo que é - um espaço onde se pode conversar amenamente, fumar, beber um 'whisky'. O que é uma apetência", diz Santos Ferro, "ou uma forma de gosto, que não existe nos hábitos da maioria pessoas nos dias de hoje."Para este engenheiro químico, "mesmo que seja um gosto aristocrático, todas as pessoas têm o direito de o ter. Não é nenhum pecado. Não acho que seja em si um mal que se pratique e que cultive um gosto do que quer que seja, mesmo que seja aristocrático."O juiz do Supremo Tribunal de Justiça, Sebastião da Costa Pereira, 64 anos, afina pelo mesmo diapasão. Sócio do GL desde 1975, afirma mesmo que "comparativamente com o Clube Portuense, o grémio é muito mais aberto." E à semelhança de Santos Ferro, o que mais o atrai no clube, é "o ambiente que se vive, que é calmo, mas também as actividades culturais que o grémio promove - sobretudo conferências literárias e exposições de artes plásticas".O ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago, 51 anos, aproximou-se do GL já depois do 25 de Abril. Se a memória não o atraiçoa tudo começou quando, com o filósofo Fernando Gil e o sociólogo Manuel Villaverde Cabral, formou o Gabinete de Filosofia do Conhecimento, que chegou a estar instalado numa sala do palacete da R. Ivens. "Depois disso tornei-me um frequentador habitual do grémio." Almoça várias vezes por mês e reúne-se com os seus amigos sempre que pode. Como ministro, já realizou vários pequenos-almoços com jornalistas. E, se a seu convite vêm a Portugal cientistas que não conhecem a história do nosso país, Mariano Gago não tem dúvidas - ruma ao GL. "É um óptimo local para dar a conhecer a nossa história, o que foi o liberalismo, falar de Eça e de Herculano, mas também do Chiado."Para o governante, "o facto de haver condições e o hábito das pessoas se encontrarem, num espaço particularmente agradável, é um valor que não pode ser menosprezado. Outro valor consiste - à semelhança do que acontece em clubes desta natureza - no facto do GL nunca ter assumido uma linha política definida, o que deixa uma grande liberdade de acção, inclusive ao nível das acções culturais", as quais na opinião de Mariano Gago deviam ser mais regulares. Quem coordena as actividades culturais, é o Conselho Literário, de que quer Santos Ferro quer Sebastião da Costa Pereira fazem parte. Reúne-se uma vez por mês e analisa as propostas que chegam ao GL. Para 2000, ano em que se comemora o 1º centenário da morte de Eça de Queirós - como de resto já aconteceu aquando dos 150 anos do nascimento - já estão a ser pensadas várias propostas. Mas ainda está tudo no segredo dos deuses.Se é verdade que, pelo menos estatutariamente, "a coisa mais importante no Grémio que se diz literário é a cultura", Gerald Salles Lane reconhece que os "actos culturais são episódicos, raros mesmo, e são geralmente a pretexto de qualquer efeméride de uma personalidade ligada à cultura". Como aconteceu em 1999, com um ciclo de conferências relacionados com a vida e a obra de Almeida Garrett que culminou com um jantar que contou com a presença de Jorge Sampaio.

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