Trovador de uma geração

A poesia (quase) toda de Manuel Alegre. O trovador que acaba de ganhar o Prémio Pessoa ergueu uma obra simultaneamente épica e lírica.

Vencedor do Prémio Pessoa de 1999 e uma das figuras relevantes da resistência democrática à ditadura, Manuel Alegre (n.1936) reuniu há pouco tempo a quase totalidade da sua poesia (e digo "quase" porque nela falta infelizmente "Senhora das Tempestades", de 98...). Passada a efusão dos comentários a propósito do prémio ainda recente, impõe-se, de qualquer modo, um rápido olhar sobre a sua escrita agora a cumprir 35 anos.Assim, o que encontramos ao longo destas mais de 800 páginas corresponde a uma obra de grande fôlego, sempre marcada por um acentuado sentido do ritmo, da rima e da musicalidade, e poderá talvez dividir-se em três fases: a primeira (desde os anos 60 até pouco depois da revolução) é constituída por um ciclo inaugurado pelos dois livros iniciais, ainda hoje muito conhecidos - "Praça da Canção" (1965) e "O Canto e as Armas" (1967) - e inscreve-se no quadro de uma escrita voltada para a intervenção social e política, de resto justificável em função do clima vivido nessa época, quando há pouco tempo começara a guerra em África e se agudizava a emigração para os países da Europa desenvolvida. É toda essa mistura de dramas humanos, expectativas adiadas, frustrações colectivas, sentimentos de revolta e de alguma esperança nunca abandonada, que vem à superfície em poemas logo celebrizados entre os círculos estudantis da oposição ao regime, dando mesmo origem a baladas rapidamente divulgadas por vozes inesquecíveis, como as de Manuel Freire ou Adriano Correia de Oliveira, o que veio a fazer com que Manuel Alegre fosse conhecido nessa altura, acima de tudo, como um notável escritor de canções.A segunda grande fase desta poesia virá a desenhar-se a partir de "Coisa Amar" (1976) e "Atlântico" (1981), oferecendo-nos talvez maior amplitude de temas, diminuindo o grau de ligação com as lutas sociais ou as referências políticas directas e aumentando quer os textos vincadamente líricos (evocando o amor sob diversos ângulos), quer os que partem de um convívio intertextual com outros poetas (p. ex. Camões), quer, enfim, os que celebram a pátria portuguesa e alguns dos seus mais importantes factos ou figuras históricas, às quais o poeta tem regressado com insistência - p. ex. o Lidador, o romance de Pedro e Inês, o rei D. João II, o infante D. Pedro, os Navegadores ou a batalha de Alcácer-Quibir.Lida a obra de Manuel Alegre à distância que o tempo já justifica, pode dizer-se que tem girado, com maior ou menor intensidade, em torno da história portuguesa, alimentando-se de um desejo de comunhão e universalidade que terá marcado o melhor da nossa presença no mundo. O seu fôlego inspira-se, assim, no destino de múltiplos grandes projectos ou decepções colectivas, voltando-se para o exterior, para uma "gramática do mar", para o infinito de um oceano onde se prolonga a voz do poeta: "Vai minha canção vai como um navio / sete mares são pequenos / para o rumo que tu levas. / Em qualquer parte alguém te espera" (p. 64)."Nostalgia da epopeia" lhe chamou por isso muito bem Eduardo Lourenço (cf. prefácio à presente edição). É que, de facto, se exceptuarmos um breve período correspondente ao 25 de Abril e à apoteose da liberdade e da esperança, momento em que se apagam quaisquer vestígios negativos e se exibe um tom naturalmente jubilatório e entusiástico - "Era um Abril de amigo Abril de trigo / Abril de trevo e trégua e vinho e húmus / Abril de novos ritmos novos rumos // (...) / esse Abril em que Abril se libertava" (p. 441) -, o conjunto da obra de Manuel Alegre tem reflectido uma reacção disfórica inicialmente virada contra a opressão da ditadura, mas depois disso (ou seja, basicamente a partir dos anos 80) cada vez mais desapontada e nostálgica, captando os sinais de uma atmosfera onde o sujeito parece sentir que tudo se tem lentamente degradado numa pardacenta desolação, num ambiente onde se foram instalando certas imagens do vazio contemporâneo, reforçando alguns efeitos de pessimismo quanto ao panorama do tempo presente: "Há um vírus nas sílabas de abril / um tóxico no ritmo e na palavra / há pássaros que trazem Chernobyl / e já não fala a água que falava" (p. 655).Neste contexto se poderá entender um pouco melhor uma terceira fase desta obra, em que tanto podemos detectar uma nostalgia por personagens com a aura heróica popular de um Che Guevara (cf. "Che", 1996) como o regresso ao antigo fascínio por Coimbra (cf. "Coimbra Nunca Vista", 1995), cidade que, tal como sucedia em alguns textos de Fernando Assis Pacheco, surge mitificada a partir da juventude e revisitada num roteiro elegíaco tecido de recordações suficientemente saudosas para que até a própria melancolia desse tempo já recuado seja lembrada com algum encanto, por exemplo ao transpor os Arcos do Jardim: "Todos os dias sob os Arcos do Jardim / todos os dias eu passava e nunca via // senão arcos e arcos entre o não e o sim / senão arcos e ogivas de melancolia" (p. 697).Seja como for, a poesia de Manuel Alegre, além de permanecer como símbolo de uma atitude de defesa da liberdade e de coerência ética, continuará a ser recordada quer pelo seu mérito literário, quer porque exprime a poderosa voz de um trovador - o trovador simultaneamente épico e lírico de uma geração talvez hoje em dia mais aburguesada ou desiludida, mas que ainda repete de vez em quando, e sempre com alguma emoção, versos como os da "Trova do Vento que Passa": "Pergunto ao vento que passa/ notícias do meu país/ e o vento cala a desgraça, / o vento nada me diz // (...) // Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não" (pp. 117/119).

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