O significado de comunidade internacional

Vivemos num mundo em que nenhum indivíduo e nenhum país existe isoladamente. Todos vivemos não só na nossa comunidade, mas também no mundo. Os povos e as culturas são cada vez mais híbridos. De Berlim a Bangalore, são reconhecíveis os mesmos ícones, quer no cinema, quer num monitor de computador. Somos todos consumidores, na mesma economia global. Somos todos influenciados pelas mesmas ondas de mudança política, social e tecnológica. A poluição, o crime organizado e a proliferação de armas letais não se prendem com considerações relacionadas com fronteiras: são "problemas sem passaporte" e, como tal, são o nosso inimigo comum. Estamos interligados, somos interdependentes.Muitas destas coisas não constituem novidade: há séculos que os seres humanos interagem no planeta. Mas a "globalização" de hoje é diferente. Regista-se mais rapidamente. É movida por novos motores, como a Internet. E é dirigida por regras diferentes, ou então o que impera, com demasiada frequência , é a ausência de regras. A globalização oferece-nos mais opções e novas oportunidades de alcançar a prosperidade. Permite-nos conhecer melhor a diversidade mundial. Todavia, milhões de pessoas no mundo inteiro vivem a globalização não como um factor de progresso, mas sim como uma força demolidora, quase como um furacão humano, capaz de destruir vidas, empregos e tradições. Muitos sentem uma necessidade premente de resistir ao processo e de se refugiar no conforto ilusório do nacionalismo, do fundamentalismo ou de outros "ismos".Confrontados com a acção potencialmente positiva da globalização, mas também com os seus riscos; confrontados com a persistência de conflitos mortais em que os civis são os principais alvos a atingir; confrontados com a omnipresença da pobreza e da injustiça, devemos ser capazes de identificar as áreas onde é necessária a acção colectiva para salvaguardar os interesses mundiais. As comunidades têm as suas corporações de bombeiros, os seus serviços municipais e as suas câmaras. Os países têm os seus parlamentos e os seus órgãos judiciais. Mas, no mundo globalizado de hoje, as instituições e os mecanismos de que dispomos e são necessários para uma acção global e, acima de tudo, o nosso sentido geral de um destino mundial comum encontram-se num estado pouco mais do que embrionário. Há muito que deveríamos ter dado um significado mais concreto à ideia de "comunidade internacional".O que faz uma comunidade? O que as une? Para alguns, é a fé. Para outros, é a defesa de uma ideia, como a democracia. Algumas das comunidades são homogéneas, outras, multiculturais. Algumas são tão pequenas como uma escola ou uma aldeia; outras são do tamanho de um continente. Hoje, é claro, as comunidades são cada vez mais "virtuais", descobrindo e promovendo os seus valores comuns através das mais recentes tecnologias das comunicações e da informação.O que nos une numa comunidade internacional? No sentido mais amplo, é uma visão partilhada de um mundo melhor para todos, como está enunciado, por exemplo, na Carta das Nações Unidas. É a nossa noção de uma vulnerabilidade comum em face do aquecimento global e da ameaça que a disseminação das armas de destruição maciça representa. É o quadro do direito internacional, dos tratados e das convenções de direitos humanos. É também a nossa noção de oportunidades partilhadas que está por detrás da criação de mercados comuns e instituições conjuntas como as Nações Unidas. Juntos somos mais fortes.Algumas pessoas dizem que a comunidade internacional não passa de uma ficção. Outros sustentam que é um conceito demasiado elástico para ter qualquer significado real. Outros ainda defendem que é um mero instrumento de conveniência, que se destina a ser exibido apenas em situações de emergência ou quando é preciso encontrar um bode expiatório para a inacção. Alguns dizem que não há normas, objectivos ou medos reconhecidos universalmente, sobre os quais possa assentar uma tal comunidade. Os artigos de opinião referem constantemente a "chamada" comunidade internacional. E as notícias citam, com frequência, o termo entre aspas, como se carecesse da solidez dos factos reais. Creio que esses cépticos estão enganados. A comunidade internacional existe efectivamente. Tem uma morada. E devem-se-lhes algumas realizações.Quando os governos, instados pela sociedade civil, se reúnem para aprovar a lei orgânica de um tribunal criminal internacional, isso é a comunidade internacional em acção, em defesa do Estado de direito. Quando assistimos a uma grande demonstração de ajuda internacional à vítimas dos terramotos na Turquia e na Grécia - ajuda dada em grande parte por quem aparentemente não está ligado à Turquia e à Grécia a não ser por um sentido de humanidade comum - é a comunidade internacional que está a seguir o seu impulso humanitário. Quando as pessoas se juntam para pressionar os governos a reduzirem o peso esmagador da dívida de alguns países mais pobres do mundo, isso é a comunidade internacional a defender a causa do desenvolvimento. Quando a consciência popular, indignada pela carnificina causada pelas minas terrestres, obriga os governos a adoptar uma convenção que proíbe essas armas mortais, isso é a comunidade internacional em acção pela segurança colectiva.Há muitos mais exemplos da comunidade internacional em acção, de Timor-Leste ao Kosovo. Ao mesmo tempo, não podemos ignorar alguns avisos importantes. A comunidade internacional não faz, com demasiada frequência, o que é necessário. Não impediu o genocídio no Ruanda. Durante demasiado tempo, a sua reacção perante o horror da "limpeza étnica" na ex-Jugoslávia foi marcada pela fraqueza e pela hesitação. Em Timor-Leste, agiu tarde demais para salvar muitas centenas de vidas e impedir a destruição brutal de milhares de lares. A comunidade internacional não fez tudo o que podia para ajudar África, no momento em que África mais precisa dessa ajuda e mais poderia beneficiar com ela. E permite que quase três mil milhões de pessoas - quase metade da humanidade - subsista com dois dólares ou menos por dia, num mundo em que conhece uma riqueza sem precedentes. A comunidade internacional nem sempre se junta de uma maneira eficaz para alcançar um objectivo comum. Mas pode e deveria fazê-lo. Durante uma grande parte deste século, o sistema internacional baseou-se na divisão e nos cálculos da "Realpolitik". No próximo século, podemos e devemos fazer mais. Não pretendo sugerir que nos espera uma era de harmonia total. É claro que haverá sempre conflitos de ideias e de interesses. Mas podemos melhorar as realidades desoladoras deste século. A comunidade internacional está em permanente evolução. Muitos fios de cooperação foram tecidos ao longo dos anos. Devemos agora entretecê-los, para fabricar um tecido resistente - a comunidade internacional de uma era internacional.* secretário-geral da Organização das Nações Unidas

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