Assim, são eternos

Eduardo Gageiro "tinha pena de morrer e estas fotografias ficarem dentro das caixas". Fez uma exposição e um livro. É o trabalho "oitenta por cento inédito" de um grande fotojornalista português. Com fragmentos de textos de António Lobo Antunes, como este: "e eu tinha a certeza de ser sempre eterno".

Quando foi ter com Zé da Soneca, "o maior reguila de Sacavém", Eduardo Gageiro tinha 16 anos e uma Kodak Baby de plástico. Com céu limpo, duas navalhas e um cúmplice de costas, a coisa fez-se. Os homens fincaram os pés na terra, apertaram a lâmina na mão até as veias do braço aparecerem sob a pele, e o miúdo, agachado nas ervas, disparou. Essa imagem (aqui à esquerda) é a que abre "Olhares", a retrospectiva de 47 anos de fotografia de Eduardo Gageiro, actualmente em exposição no Museu da Electricidade, e ampliada (o dobro das fotos) num álbum magnificamente impresso, com textos de António Lobo Antunes.A culpa foi de Alain Delon e dos outros: os que apareciam no écran da Academia Recreativa Musical de Sacavém e dos Bombeiros a encarnar os heróis-anti-heróis do realismo italiano, os actores de Rosselini e Visconti, os Rocco e seus irmãos. Eduardo Gageiro, que aos 12 anos começara a trabalhar como paquete na Fábrica de Louças, ia vê-los nas folgas, deslumbrado com aquele preto e branco dramático de onde os homens com rosto marcado cresciam para o céu."O mexicano Gabriel Figueiroa foi director de fotografia em muitos desse filmes, e influenciou-me. Tenho poucas fotografias encenadas, mas esta é uma delas", admite Gageiro. Espantoso é isto, repita-se: ele tinha 16 anos e uma Kodak Baby de plástico emprestada pelo irmão. Mais: não estava sequer no princípio, fotografava desde os 12 anos, altura em que publicou a sua primeira foto de capa de jornal - no "Diário de Notícias"."Nasci em Sacavém, frente à Fábrica de Louça. O meu pai tinha uma casa de pasto e queria que eu fosse empregado de escritório. Entrei como paquete e comecei a aprender muito na secção de pintura e de escultura, sobre composição, sobre estética. A primeira máquina que usei foi a Kodak Baby emprestada, até comprar uma Rolleycor. E, ao fim de 10 anos na fábrica, tive de fugir de casa para fazer o que queria, fotojornalismo."Primeiro no "Diário Ilustrado", depois por aí fora: "Século Ilustrado", "Eva", "Almanaque", "Match Magazine", Associated Press, "Sábado". Viajou por uma boa parte do mundo, ganhou uma extensa lista de prémios, as suas fotos do pré e pós 25 de Abril são documentos históricos (a sequência da governanta a beijar o rosto de Salazar na urna, o retrato do ditador a ser retirado da parede por um soldado de botas pisando o sofá de Silva Pais, Salgueiro Maia à frente das tropas), trabalhou para a Companhia Nacional de Bailado e para a Presidência da República, actualmente fotografa para a Assembleia da República e considera-se "free lancer".Aos 64 anos, faz esta exposição e este livro porque "tinha pena de morrer e as fotos ficarem dentro de caixas". É que "oitenta por cento" das imagens agora mostradas são inéditas, reveladas e ampliadas a partir de milhares de negativos que Eduardo Gageiro tinha em casa. "Levei muito tempo a encontrar um fio, a tecer uma ideia. Muitos dos filmes estavam danificados, com humidade, alguns ficaram nos arquivos do "Diário Ilustrado". O meu filho Rui [também repórter fotográfico] ajudou-me muito a seleccionar, a buscar uma sequência."É impressionante o que resulta dessa escolha e das relações que se estabelecem entre as fotos. Não só porque a esmagadora maioria das imagens são de facto inesperadas, mesmo para quem seguiu o trabalho de Gageiro, mas porque estabelecem proximidades, "racords", fusões estimulantes. Libertam-se do constrangimento de duas fronteiras, a temporal e a geográfica, põem lado a lado Sacavém e o Parque Mayer, Bissau e a Feira das Mercês, Lisboa e Bagdade, Câmara de Lobos (Madeira) e Banguecoque (Tailândia), a Feira da Ladra e a Praça Vermelha, Nazaré e Samarcanda; saltam dos anos 50 para os anos 80, dos anos 90 para os anos 60. E muitas e muitas vezes, a localização e data (referenciadas discretamente por baixo da foto) apanham-nos de surpresa, como se a sequência de imagens tivesse um lugar, um tempo únicos. Instante que fica fora do tempo e do espaço: não é isso a fotografia?E se vale a pena ir ao Museu da Electricidade, onde estão expostas 128 fotografias, mais ainda vale o que não é fugaz, tem 268 fotos, o texto de abertura de António Lobo Antunes (escrito a pedido do fotógrafo) e fragmentos retirados da obra do romancista a intercalar os vários andamentos: o álbum "Olhares". "(...) Quero usar calças compridas, quero descer dos eléctricos em andamento, quero ser revisor da Carris, quero tocar todas as cornetas de plástico do mundo, quero uma caixa de sapatos cheia de bichos da seda (...)"Três olhares: o do menino de bochecha enfarruscada (Sacavém, 52), o do menino de carapinha com desenho (Bijagós, 72), o da menina de laçarote branco que agarra dois dedos da mão de uma mulher (Bagdade, 96).E depois: meninos atrás de arame farpado, dentro de caixas, num bairro da lata, ao colo das mães, de mão dada, no circo, numa tenda, por cima de barcos, num rio. E são de Tóquio, de Nova Iorque, de Miranda do Douro, da Cova da Piedade. E uns serão meninos ainda e outros já terão sido meninos há muito tempo. Aqui são todos meninos. A foto da árvore com o banco (aqui, na página ao lado, em cima, à esquerda) pertence a esta sequência e foi tirada no Cais do Sodré em 1973."(...) Nunca tivemos tempo, não é, uns para os outros, e agora é tarde, estupidamente tarde, ficamos assim a olhar-nos, ausentes, estrangeiros, cheios de mãos supérfluas sem bolsos para ancorar (...)"Três fotos seguidas de pares de namorados (Munique, Roma, Amesterdão), e o livro abre-se neste plano espantoso: à esquerda, um par da Feira da Ladra que parece saído dum filme de Pasolini ou Fassbinder - um homem de volumoso sutiã, combinação por cima da roupa e mão na anca, outro homem vestido de marinheiro, de mãos atrás das costas -, à direita, dois noivos diante do túmulo de Lenine na Praça Vermelha.E a impecável garota militar de mini-saia em Novosibirsk (na Sibéria) com um belo descapotável branco cheio de impecáveis oficiais chineses que olham para ela? Quer dizer, olham para a esquerda. E ela é o que está na foto à esquerda."(...) Escute. Vai começar a amanhecer, os despertadores do prédio em frente empurrarão, brutalmente, para fora do sono, as pessoas que dormem (...) na direcção de quotidianos sem alegria, de empregos melancólicos (...)"A asa do avião a ser limpa por dois homens (ver página do lado, em baixo à direita) é a que abre esta sequência: operários em fábricas, homens a andar para o trabalho, velhos pescadores em Mira, Sines, Lisboa (o da foto da página ao lado, em baixo à esquerda), apanhadores de pérolas, bêbedos, minas, lixo, cheias, praias poluídas.Essa imagem de quatro ceifeiras de costas com plásticos por cima do corpo porque chove. A chuva está lá.Esse rosto (podia ser Estaline) de bigode, boné, cigarro ao canto da boca, que olha para um ponto indefinido, com chaminés atrás de si (Sacavém, 60)."(...) Aqui, pensou o médico, desagua a última miséria, a solidão absoluta, o que em nós próprios não aguentamos suportar (...)"Que diz a mulher grisalha de pandeireta e dedo apontado (Nova Iorque, 34) ao homem deitado, encolhido na Mitra (Lisboa, 81), figura horizontal sob a figura horizontal que a queda de estuque na parede originou? Um comboio a abarrotar parado em Vilar em Formoso não se confunde com uma carruagem de metro parada em Nova Iorque?A fotografia que podem ver na página da esquerda, em baixo, ao centro, é do interior do hospital Miguel Bombarda."(...) E o meu tio, das nove da manhã às seis da tarde, de patamar em patamar, com a Bíblia em riste (...)"Uma escada é um caminho para o céu? Uma praia é um lugar de freiras? Um homem na Lituânia tem um livro sagrado nas mãos, uma mulher em Monsanto tem uma cruz ao peito, cobrem a cabeça e o corpo as mulheres de Agadir, Marrocos, de Kerbala, Iraque, de Fátima.Fátima: essa imagem inesquecível de uma menina a agarrar uma vela com uma mão e o cajado com a outra, com uma lágrima suspensa na ponta da trança. Foi em 1967. Está a ser.Fátima: a visita do Papa é uma imagem convulsa de vagas de espuma. A foto vai além do que o disparo contém. A revelação é isso."(...) A morte pensou ele. Sempre imaginei que fosse um anjo. Ou uma mulher de cabelos loiros. Ou um homem muito velho com uma foice na mão."Outro plano do livro: à esquerda, duas mulheres na Nazaré, uma tapa o rosto, a outra está de boca aberta (num lamento?); à direita dois homens em Samarcanda (Uzbequistão, no tempo da URSS), um está de boca aberta (a rir?), o outro tapa o rosto.Há uma mulher velha que puxa um barco na praia da Nazaré coberta de preto contra um céu preto com nuvens brancas. Há a violência da polícia contra os manifestantes do 5 de Outubro, a partida dos barcos para as colónias. No fim há a famosa sequência do beijo a Salazar, na urna."(...) E lembrou-se de Caxias (...) da inveja de não ser herói, não possuir um camuflado, uma arma, não libertar ninguém (...)"São as mais emblemáticas fotos de Eduardo Gageiro.Cunhal e Soares juntos no 1º de Maio de 74, a multidão com cravos, o vê da vitória em cima dos tanques, os soldados de braço dado com as raparigas, Spínola (extraordinário retrato) em Mafra, em 75. "(...) Concertando os fusíveis da alma à custa de expedientes de arame (...)"Uma bocarra de palhaço, um touro, equilibristas de circo, Eusébio em jogo, Dizzy Gillespie soprando, um bailarino que voa, um bailarino que descansa."(...) e eu tinha a certeza de ser sempre eterno (...)"José Cardoso Pires sentado na cama, José Régio dentro da cama, as mãos de Ferreira de Castro escrevendo, os pés com meias de Miguel Torga, Amália à porta de um carro em Alfama, Raul Solnado a espreitar de um bueiro na estrada, Jean Marais no camarim, Orson Welles no Guincho, o perfil iluminado de Lopes Graça, o último retrato de António Gedeão, Rubinstein ensaiando no Coliseu dos Recreios como um vulto furtivo de Hitchcock.E estes que aqui estão, assim eternos: Mário Cesariny tão jovem, Rudolf Nureyev descendo uma escada no São Carlos, Sophia na sua janela a escrever.O álbum custa 10 contos - "praticamente o preço da fabrico" - porque teve um patrocínio da EDP. A edição é de Eduardo Gageiro: "Escrevi para o Centro Português de Fotografia e a directora Teresa Siza demorou mais de um mês a responder. Nunca consegui falar com ela. Quando me respondeu, foi para dizer que não tinham verba e podiam apenas comprar exemplares. Ignoraram-me completamente. Foi através da secretária de estado da Cultura [Catarina Vaz Pinto] que consegui um apoio. Depois dirigi-me a várias entidades e a EDP aceitou patrocinar o livro." A exposição no Museu da Electricidade (Av. De Brasília, Lisboa) dura até 14 de Janeiro.

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