Furtos de arte sacra no Alentejo

São quase semanais os assaltos aos locais de culto no Alentejo, na sua maioria executados por quadrilhas "especializadas" em arte sacra. Quando vive alguém por perto dos centros históricos, ainda é possível um ou outro alerta. Se não, resta esperar que os santinhos façam o milagre de saber que os roubou.

Uma intensa vaga de assaltos a igrejas e pequenas capelas no distrito de Beja está a deixar seriamente preocupadas as autoridades eclesiásticas e a alarmar as populações de muitas aldeias isoladas, que, ao longo dos últimos meses, assistem impotentes ao desaparecimento do interior dos templos de imagens sagradas com as quais mantinham ao longo de gerações relações de grande afectividade. O responsável pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, José Falcão, considera a situação "muito preocupante, um fenómeno que ocorre em áreas muito diversificadas do Baixo Alentejo, do litoral a sítios recônditos do interior, e que se pode vir a tornar crónico". Os locais assaltados são estudados com minúcia e envolvem uma cuidadosa preparação na escolha das ferramentas que são utilizadas nos arrombamentos, bem como o conhecimento preciso dos pontos mais fracos para a penetração nos edifícios. Alguns furtos foram mesmo antecedidos de contactos com os párocos, que indiciavam o propósito de conhecer pormenores sobre determinadas peças existentes nos templos. Há fortes indicações que assaltos houve que foram feitos "por encomenda ou por catálogo". "Os larápios actuaram como se conhecessem previamente as peças a furtar", admite José Falcão, acrescentando que a frequência dos roubos é tal que está a obrigar "à deslocação temporária de peças de grande valor existentes nas igrejas isoladas para localidades mais próximas dos aglomerados populacionais, solução que, nalguns casos, terá evitado o seu desaparecimento" ao garantir uma melhor protecção. Mesmo assim, não foi possível evitar os furtos em igrejas situadas em importantes centros populacionais, como é o caso de Sines, Beja e Mértola. Numa luta contra o tempo, a diocese de Beja está a inventariar todo o seu património para assegurar uma melhor protecção do espólio que tem disperso por mais de mil igrejas e capelas do Baixo Alentejo.Há cerca de três meses, numa noite de forte temporal, a igreja matriz de Sines, localizada no centro da cidade, foi assaltada. Não se via ninguém na rua, mas mesmo assim alguém telefonou à GNR informando que um indivíduo arrombara uma das portas laterais do templo. Os agentes aparecem passado pouco tempo e detiveram o ladrão, de nacionalidade italiana. Mas este terá deixado no local alguns cúmplices, que tiveram tempo de fazer desaparecer a caixa das esmolas - uma peça raríssima que integra o único quadro que representa a Nossa Senhora das Salas, uma imagem do século XVIII, de grande veneração local, sobretudo junto dos pescadores. No interior do templo encontram-se peças de arte sacra de grande valor patrimonial e alguma ourivesaria em prata que muito provavelmente seriam levadas não fosse o alerta dado. Durante quatro meses desconheceu-se o paradeiro da caixa das esmolas, embora o arquitecto Ricardo Pereira, da equipa do Departamento de Património da Diocese de Beja, admitisse que poderia estar entre os arbustos de uma falésia sobranceira ao mar e próxima da igreja,o que veio a confirmar-se, depois de intensas pesquisas efectuadas por funcionários da câmara de Sines. A acção dos que vivem nas proximidades da igreja matriz de Sines, alertando rapidamente as autoridades, acabou por ser determinante. "O Departamento do Património da Diocese já tinha efectuado contactos prévios para os sensibilizar da necessidade de salvaguardar a igreja", observa Ricardo Pereira, acrescentando que os assaltos tornam-se mais fáceis porque "as pessoas abandonam os centros históricos das cidades para morar na periferia". Menos sorte tiveram os moradores da pequena aldeia de Almeirim, situada entre Castro Verde e a freguesia de Casével. Da pequena ermida dedicada a S. Sebastião, isolada em pleno campo, já desapareceram todas as imagens que a população da aldeia venerou ao longo de muitas gerações. Trata-se da imagem de Nossa Senhora das Neves, uma peça de arte sacra do século XX, que foi levada durante uma noite há cerca de mês e meio, "depois de terem rebentado a porta com um pé a preceito", constata Virgínia Rosa, residente em Almeirim, referindo ainda que "já tinham roubado um santo e uma santa com o Menino Jesus ao colo, que eram mais antigas". No primeiro sábado de cada mês realizava-se lá o culto, mas "agora não tem havido missa porque a igreja está vazia". Revoltada, Virgínia Rosa questiona o poder sagrado. "Dizem que os santinhos fazem milagres. Então porque é que não fazem com que se saiba quem os levou?!" E quem os levou "não pega em ferro quente que assim ficavam com as marcas da sua maldade". A sua vizinha Antónia Mestre diz que "ao povo restam as preces para ver se a Nossa Senhora das Neves aparece". O que custa mais à população é que, há relativamente pouco tempo, arranjaram as portas e o interior da igreja. Mas as pessoas deixaram, depois da festa em sua honra, fios de ouro e anéis na imagem, e os "malandros" levaram tudo. O padre Paulo, que celebrava a missa na ermida, realça o comportamento das pessoas ao alertarem rapidamente as autoridades. "Era uma imagem muito venerada que representava a mãe, a amiga, a conselheira". Quanto à importância material da imagem, "tem um valor relativo", salienta. Por recuperar encontra-se igualmente a imagem de S. Luís, peça em madeira policromada do século XVII, furtada no passado mês de Novembro da igreja de S. Pedro de Pomares, em Baleizão, no concelho de Beja. Trata-se de um santo de grande devoção local, por estar ligada à protecção dos rebanhos e dos pastores, "com grande cotação no mercado, por existirem poucos exemplares fora das região Alentejo", frisa José Falcão. Estes roubos são apenas os mais significativos de entre muitos outros, que vão desde o puro acto de vandalismo, praticado por delinquentes, até ao furto de azulejos das paredes interiores das igrejas e de outras peças menores que indiciam como operam as quadrilhas "especializadas" nos assaltos. "A protecção das obras culturais, imóveis ou móveis, vai brevemente estar especificada nos planos de emergência locais e nacionais", anunciava em 1998 o então vice-presidente do Serviço da Protecção Civil, Manuel Lacerda, durante um simpósio internacional sobre protecção dos bens culturais em situação de emergência. Este compromisso foi avalizado pelo então secretário de Estado da Administração Interna, Armando Vara. Um ano depois, o MAI continua "a protelar as negociações da proposta que a tutela elaborou", denuncia José António Falcão, frisando, no entanto, o papel decisivo e fundamental que continua a ser prestado pela Polícia Judiciária na localização das peças furtadas. Nas actuais circunstâncias, "certas obras de arte só podem ser expostas em museus com segurança", isto apesar de estar inventariado mais de 80 por cento do património existente nas igrejas e capelas do Baixo Alentejo. No entanto, José Falcão está longe de admitir que as populações possam ser privadas do acesso às imagens que fazem parte da sua memória colectiva. "Uma imagem religiosa é, para estas pessoas, muito, muito mais que uma obra de arte", conclui Ricardo Pereira.

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