Imagens do mito

Silva Nogueira, o fotógrafo dos actores, retratou Amália Rodrigues numa série de sessões realizadas entre 1942 e 1954. As fotos estão a partir de hoje expostas no Museu do Teatro, em Lisboa. Imagens da fadista em tons de luz e negro, a cor com que se vestiu de esfinge. "Amália dominava a câmara", recorda Vítor Pavão dos Santos, director do museu. Num destes retratos a fadista reconheceu "haver uma coisinha lá dentro". Guardou-o em casa até ao dia da sua morte.

Amália, tendo como fundo a sombra de uma guitarra furtiva é uma das imagens mais conhecidas da fadista, retratada por Silva Nogueira. Foi a escolhida para ilustrar a capa da exposição "Amália Rodrigues - Retratos Fotográficos de Silva Nogueira" que hoje inaugura no Museu Nacional do Traje, onde se irá manter até meados de Fevereiro do próximo ano, circulando a partir dessa data por todo o país. A iniciativa partiu do Instituto Português dos Museus, em cuja divisão de fotografia se encontra o espólio de Silva Nogueira, o "grande fotógrafo dos actores", nas palavras de Vítor Pavão dos Santos, director do museu e autor de "Amália Rodrigues - Uma Biografia" (Ed. Contexto, 1987), sobre a fadista que no passado dia 6 de Outubro faleceu na sua residência, em Lisboa. Organizados por ordem cronológica, os 44 retratos tirados por Silva Nogueira a Amália Rodrigues atravessam 12 anos de carreira da artista, de 1942 a 1954. A acompanhar a exposição será feito, também amanhã, o lançamento de um livro-catálogo contendo reproduções da quase totalidade das fotografias expostas."O Silva Nogueira foi a primeira pessoa que fixou a imagem da Amália", explica Pavão dos Santos. Uma imagem - imagens - que o tempo e a progressiva ascensão de Amália no imaginário português transformaram em ícones. Nas fotos de Silva Nogueira, Amália olha quase sempre para longe. Para o alto. Para dentro. Fotos de negro e luz e distância.Fotografava-se o quê, fotografava-se quem, quando se fotografava Amália? O fotógrafo colhe, materializa imagens da sua visão, projecta-se no modelo que fotografa. Mas quem, ele ou Amália, comandava essa projecção? Amália tornou-se com o correr dos anos numa esfinge. É essa mutação da mulher que nas primeiras sessões "posava constrangida, dominada pela câmara e pelo fotógrafo" e nas últimas "estava já solta, dominando por completo a câmara" que Silva Nogueira captou através de uma série deslumbrante de fotos que relevam o enigma e a dialéctica existente na mulher vulgar que se olhava de fora e via a artista idolatrada, possuída pela sua música, pelo seu público e pelo seu fado. Vítor Pavão conta que Amália "às vezes falava de si na terceira pessoa": "Há um episódio, que relato no meu livro, em que ela, ao falar de Hermínia Silva, por quem tinha uma grande admiração, se refere a si própria dizendo quando eu já era a 'Amália Rodrigues...'. Tinha consciência do peso que era ser Amália Rodrigues".Nem sempre foi pacífica a relação que Amália mantinha com as imagens de si própria. "Ela às vezes não gostava de se ver, achava que não se reconhecia, que parecia uma mulher de mil caras. Via-se ao espelho e encontrava sempre um rosto diferente e dizia que nas fotografias isso se notava", explica Vítor Pavão dos Santos. Por isso, Amália "não era fácil de ser apanhada, sentia sempre a câmara, nunca era apanhada em falso". Mas numa das fotos, uma só (a número seis da exposição, feita em 1944), a fadista reconheceu pela primeira vez "haver uma coisinha lá dentro". Viu nela a sua tristeza. O indefinido que sentia ser. Confessou a Pavão dos Santos ter guardado esta fotografia em casa até ao dia da sua morte.Mas Amália, a par da relutância em "ser apanhada", tinha "a noção do espectáculo", compondo ela própria aquela "imagem de marca dos vestidos pretos, os 'vestidos de infanta' como alguns críticos franceses lhes chamavam depois da sua primeira passagem por Paris". Uma imagem que Amália afirmava ter "nascido dentro dela" onde até nos fatos havia "drama", como acentua Vítor Pavão dos Santos.Nos próximos dois meses, em Lisboa, a seguir no resto do país, cada um de nós, ao olhar para as fotos de Silva Nogueira, reterá de Amália Rodrigues um pedaço de memória, um rosto, um corpo, um gesto, um olhar suspensos. Num dos retratos, Amália apoia-se numa guitarra. Noutros abandona-se. Alguns mostram-na a sonhar. "Amália foi uma das mulheres mais complexas que alguma vez conheci", recorda Pavão dos Santos. A sensação que fica é de que cada uma destas imagens da "mulher das mil caras" é uma janela.

Sugerir correcção