O gosto particular

No Museo Extremeño y Iberoamericano de Arte Contemporáneo, em Badajoz, expõem-se mais de 40 artistas portugueses: aqueles que António Cachola incluiu na sua colecção privada, reflexo de "um gosto particular" e de um projecto a longo prazo.

Uma colecção é um lugar onde uma infinidade de caminhos se cruzam em direcções que se podem revelar inesperadas. Numa nova colecção particular de arte contemporânea portuguesa, os caminhos de mais de 40 artistas das décadas de 80 e 90 cruzam-se com os de um homem, o coleccionador António Cachola, e o caminho deste cruza-se com o de um museu. A direcção inesperada pode ser Badajoz e, aí, o momento da exposição. Sob o título "Colecção António Cachola", mostram-se nessa cidade, até 9 de Janeiro, cerca de oitenta obras. A exposição inaugurou na passada sexta-feira, numa instituição denominada M.E.I.A.C. Na sigla deverá ler-se Museo Extremeño y Iberoamericano de Arte Contemporáneo e, neste nome, um projecto: fazer a articulação da memória da arte no século XX na Extremadura espanhola com a de toda a Península Ibérica (e América-Latina). Foi nesse sentido que a instituição, orientada inicialmente por Bernardo Pinto de Almeida, reuniu um acervo tido como uma das melhores colecções institucionais de arte portuguesa dos anos 80 - obras de Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, Leonel Moura ou Pedro Calapez mas também de António Dacosta ou Nikias Skapinakis, entre todos os que marcaram a produção artística portuguesa dessa década. É também nesse sentido que se torna particularmente consequente o encontro do museu, através do seu director António Franco, com o português António Cachola. A colecção deste economista começou a ser elaborada a partir de trabalhos dos anos 80 porque ele considera essa década decisiva para a arte portuguesa. E porque, a nível pessoal, foi nessa altura que teve o primeiro contacto significativo com as artes visuais, através de três bienais inauguradas em Campo Maior, onde vive há vinte anos.Mas o conjunto alargou-se para além desse momento e desses nomes, e integra actualmente os mais jovens autores portugueses (como João Onofre ou Gil Amourous). Integra também, consequentemente, as suas linguagens e preocupações estéticas e conceptuais que, no M.E.I.A.C., conferem à colecção permanente do museu uma perspectiva de continuidade (mesmo que através de rupturas) em relação à produção de há uma década atrás."Pensei no que é que emergia nos anos 90 e comecei a perceber que conseguia digeri-lo", explicou ao PÚBLICO António Cachola, referindo-se, a título de exemplo, aos trabalhos em vídeo. Falava poucas horas antes da inauguração da exposição que, entre artistas, galeristas e curadores, levou a Badajoz uma fatia da comunidade das arte visuais, composta pelos seus diferentes agentes. Ao todo, cerca de 450 pessoas, no que constituiu a maior inauguração de sempre no museu, segundo o seu director.Em pouco tempo a colecção de António Cachola evidencia-se, segundo António Franco, "como uma das colecções novas mais interessantes". Não só, como sublinha Fernando Calhau, director do Instituto de Arte Contemporânea (que apoiou a iniciativa), porque se trata de uma colecção composta por "autores muito interessantes, todos eles, e com peças bem escolhidas". Também porque "incorpora nos seus fundos suportes não convencionais e se interessa pela instalação e pelo vídeo", trabalhos que ficam fora das colecções particulares - que se formam pelo desejo de "decorar a casa" e, regra geral, ficam prontas "quando essas paredes terminam". A peça que abre a exposição, "Wash and Go", uma instalação de Joana Vasconcelos elaborada a partir de "colants" coloridos que, dispostos sobre duas estruturas de ferro, se assemelham às máquinas de lavagem automática de carros, não se presta a tal fim. E a "Cama Valium", da mesma autora, provocou alguma polémica no museu por ser elaborada a partir de lamelas desses tranquilizantes que no mercado negro espanhol são vendidos ao mesmo preço que a cocaína. A peça esteve prestes a ser retirada do conjunto. Acabou por ficar, mas, devido às condicionantes do espaço cedido pelo museu, o mesmo não aconteceu a outras obras integradas na colecção - trabalhos de Rui Serra, Ilda David, Ana Vidigal ou Fátima Mendonça.A montagem da exposição, e a própria colecção, são assim resultado de escolhas. Como sublinhou o comissário da exposição, João Pinharanda, a colecção - que na fase final ajudou a assessorar - não explica a arte portuguesa, nem é essa a intenção. "É uma colecção que reúne um gosto particular [o do seu proprietário] e que abrange um projecto mais lato". O culminar desse projecto, no "pós-M.E.I.A.C." seria, para António Cachola, encontrar numa autarquia do Alentejo um espaço com o qual estabelecer um protocolo segundo o qual "durante dez ou 15 anos" a colecção pudesse passar a fazer parte da oferta cultural pública, "preenchendo assim uma lacuna que certamente existe no Alentejo".Fazendo o paralelo dessa lacuna com a realidade nacional, (existem poucos coleccionadores particulares de arte contemporânea) o seu projecto exprime ainda a vontade de surgir como exemplo: "Que isto fosse visto como um modelo de comportamento a ser seguido", afirma Cachola. "Se houvesse em Portugal uma pessoa por capital de distrito a fazer o que fiz, creio que ficariam à vista as implicações para a arte contemporânea: uma enorme movimentação na arte, de todos os agentes", explica, consciente dos riscos mas obviamente orgulhoso. "Quando se tem vontade de fazer uma coisa deste género, tem que ser bem feita, caso contrário seria contraproducente. Porque é que o produto final do projecto é isto? Não fui eu sozinho, rodeei-me de pessoas que me ajudaram a direccionar o meu comportamento". O que é uma aposta também em termos financeiros. Mas Cachola diz que não lhe interessa demasiado o actual valor da sua colecção. "O interessante é que ela vá valer cada vez mais, porque isso é sinónimo de os artistas estarem cada vez mais interessantes e reconhecidos". "Gostaria que as pessoas que fizerem uma reflexão sobre a minha colecção o fizessem de forma abrangente. Como é que começou? Qual foi a metodologia? Gostava que se perspectivasse este trabalho em termos analíticos, para chegar à conclusão que quando se faz uma colecção nestes parâmetros" o resultado é necessariamente positivo.

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