O fura-pneus

Quando lhe perguntam onde nasceu, responde, desconcertante, que não sabe de que terra é. É uma brincadeira, mas que assenta que nem uma luva a Maria Zulmira Pires de Lima de Carvalho. Nascida em 1914, em Linda-a-Pastora, desde cedo partiu para o Alentejo, primeiro para Portalegre, depois para Beja. No princípio dos anos 30 já estava em Coimbra, onde cursou Direito. E foi na cidade do Mondego que conheceu o homem que viria a modificar para sempre a sua vida, o embaixador Guilherme de Castilho. A partiu de então, deu quase a volta ao mundo - passou por África, pela América Latina, pelo Oriente e, finalmente, pela Europa. "Andei com a casa às costas durante mais de trinta anos. Mas nunca me importei com isso. Antes pelo contrário." Pelo caminho, foi escrevendo. Estreou-se em 1961, quando publicou "Álbum", com o qual ganhou o Prémio Revelação (Romance, Novela e Contos), da Sociedade Portuguesa de Escritores, vindo a vencer mais tarde com "Um Dia São Dias", o Prémio Almeida Garrett. Aos 85 anos, a embaixatriz romancista revela as suas memórias ao PÚBLICO.

O senhor José, o dono do restaurante, tem uma opinião médico-científica sobre o senhor Benito, o galego:Eu acho que ele tem alguma paranóia.Com este exame, o senhor José defende um tratamento inovador. Disso informou o próprio senhor Benito, algo perto do seu nariz.Vais pagá-la com o corpo, ai vais pagar vais... És um porco, um porco! Aparece lá, aparece!O senhor Benito fica então em lista de espera, mas não deve desesperar. Terá é que aparecer lá, porque ali onde estavam, à porta do tribunal, cercados de juízes e polícias, não havia condições. Houve uma noite em que começaram a cura, junto ao Tejo, mas o senhor Benito ausentou-se para Espanha, sem aviso, e só agora se refez o diagnóstico.Foste tu, foste, seu porco! Só a mim, foram seis!, gritou-lhe o senhor José.Quanto à autoria, primeiro houve dúvidas. E pistas falsas. Num sábado à noite, o senhor José chegou ao carro e tinha os quatro pneus em baixo, furados a navalha. Nas portas, estava uma cruz riscada na tinta, uma marca que arrepia, criiiiiiii. Dá solidão, a um homem, encontrar os pneus furados no Campo das Cebolas.Naquele dia tinha vindo um drogado pedir-me um limão ao restaurante e eu não dou limões para a droga e quando saí estava aquilo naquele estado.O senhor José, o dono do restaurante, tem esta recordação marcada para sempre, entre outras, claro. É como um rasto de travagem no alcatrão, dura muito.Se eu tenho apanhado o drogado nesse dia, eu tinha-lhe dado! Mas no sábado seguinte voltou a acontecer e eu 'eh pá, mas hoje ninguém me veio pedir nada!...'O senhor José já nessa altura era dado a deduções e ao empirismo:A gente sabe que os drogados fazem as coisas, mas depois esquecem.O problema ganhava dimensão e ficará mesmo na cultura oral do Campo das Cebolas ao Cais do Sodré. Há anos, um monstro atacava de madrugada os carros estacionados, furava-lhes os pneus e riscava uma cruz na porta, era deixar lá o carro e habilitar-se. A arma: um objecto cortante, provavelmente navalha ou estilete. O motivo: desconhecido. O padrão da vítima: fora a cruz na porta, sem dúvida uma marca pessoal de marcação de território, nenhum aparente. Ele não escolhia se o carro era melhor ou pior. Ia tudo a eito...!A mutilação automóvel durou quase um ano e nesse sentido era um escândalo regional.O senhor José virou-se para a mulher e disse-lhe que era hoje. De hoje à noite não passava. A mulher recordou-lhe ser Dezembro, mês em que as noites são frias. Às dez da noite o senhor José estava atrás de uma Ford Transit, a fazer "um quarto de sentinela", mais estacionado que o próprio carro.Eu fiz a guerra do Ultramar. Por volta da meia-noite, o senhor José reflectiu que a última vez que fizera um quarto de sentinela tinha menos trinta anos e estava noutra latitude. Começava a gelar-se-lhe a substância mole do osso. Mas dali via-se a avenida da marginal em "toda a sua largura e comprimento". Então um ponto animou-se no horizonte e uma figura começou a crescer. Baixo, de ombros curtos, cabelo de juba prateada, passo atento, vinha um homem a furar pneus. Espreitava pelo ombro, com os óculos grossos como lentes de farol, espetava à esquerda, espetava à direita e assinava com a cruz. O senhor José, atrás do vidro da Ford, sofria.Mas... mas aquele é o Benito!Conhecia-o muito bem. Era um estivador da zona, agora reformado, e cumprimentavam-se na rua. O senhor José correu como um comando. Ainda estavam os pneus a chiar!E deu-lhe dois murros, mas chegaram dois cidadãos contra a violência e seguraram-no, "largue o homem, largue o homem!" O senhor José largou-o e o senhor Benito só parou em Espanha. O dois salvadores quando souberam o que o senhor Benito tinha feito, ainda tentaram correr e darem-lhe eles uma sova. As pessoas de bom coração são muito irreflectidas.Nessa noite o senhor José deixou uma mensagem no vidro de cada carro. Dizia o nome e a morada do senhor Benito, para apresentarem queixa. Punha o seu próprio nome, oferecendo-se como testemunha. Alguns apresentaram, mas passou tanto tempo que as pessoas foram esquecendo. Por exemplo, hoje: o principal queixoso tinha acabado de comprar o carro, era "um carro novinho", disse à juíza. Mas disseram-lhe que naquele julgamento não lhe pagavam os pneus e aceitou desistir da queixa. O senhor Benito também aceitou:É claro que aceito. Eu nunca fiz isso, foi um senhor que está lá fora que inventou tudo.Falava do senhor José, que tinha passado uma manhã miserável a convencer o outro:Não desista, por favor, não desista se não nunca mais o apanhamos! Ah, mas já estou farto de vir cá, é sempre adiado... Quero é ver-me livre disto.E desistiu. Foi por isso que o senhor José correu atrás do senhor Benito, o galego, que rastejava pelas paredes até à porta do tribunal.Eu apanho-te, seu porco! Aparece lá!E enquanto não acabou de me contar toda esta horrível história, o senhor José foi um pneu com excesso de ar.

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