A barbárie instalou-se em Angola

Quase não dá para acreditar! Mas o certo é que as forças da barbárie, com assento no Governo de Angola, levaram a melhor. Fizeram o que parecia impensável: o velho e outrora majestoso sobradão - localizado no centro da cidade de Luanda - que toda a gente conhecia a admirava pelo nome de "palácio de dona Ana Joaquina", veio abaixo. Realmente, custa a acreditar. Na origem deste delito de lesa-pátria está a decisão de um inominável labroste e criminoso que responde pela superior administração cultural do país.Não bastassem as armas que matam todos os dias e transformaram Angola num vasto e medonho cemitério, eis que agora se romperam todos os diques da decência nacional: já nada refreia essa canalhada, esses tontos e falsos burgueses - promovidos a governantes -, que não olham a meios para consumar os seus sórdidos interesses e dizem ser preciso apagar os vestígios da colonização portuguesa. Na década de 80, vi essa caterva de indivíduos cometer as piores insânias contra o património cultural em nome de uma estulta afirmação cultural africana, advogando que se deveria queimar, por exemplo, todo o acervo documental do arquivo histórico. "São papéis do colonizador", peroravam eles em êxtase.Agora, porém, talvez mais livres do que nunca de certos entraves, uma vez que Angola virou um autêntico casino, ei-los de novo, sem o menor pejo, a vibrar o último golpe nessa grande jóia arquitectónica do século XVIII, a única que restava na capital e em todo o país e que fazia as delícias dos estudiosos, dos velhos amantes da cidade e também dos estrangeiros, que perscrutavam na fachada e no porte altaneiro dessa casa nobre os sinais de uma época de ouro. Época que se reporta a Setecentos e à 1ª metade do século XIX e durante a qual as aristocracias angolanas do litoral foram efectivamente poderosas. Dona Ana Joaquina dos Santos Silva (1788-1859), mulata de Luanda, bisneta por linha paterna de uma negra forra, rica negociante e armadora, cujos navios singraram por todos os mares do mundo, foi a proprietária desse palácio desde 1824 até à sua morte. Ninguém melhor do que ela como expoente dessa notável elite económica angolense, que sempre rivalizou com a metrópole colonizadora na afirmação dos seus próprios interesses, espécie de nacionalismo "avant la lettre".Todavia, esta preocupação pela memória nacional é o que menos interessa aos carrascos da cultura em Angola, que ditam ordens do alto da sua ridícula empáfia e ignorância e vão assassinando o país sem se importarem com as consequências. Apenas lhes interessam os negócios. De facto, a destruição do "palácio de dona Ana Joaquina" é uma brutalidade só justificada pela idiotia e pela sede destemperada de dinheiro. É de lamentar, nessa empreitada, o papel da empresa portuguesa Soares da Costa, que derribou o imóvel e que, pela voz de um dos seus funcionários, declarou, sem o menor pudor, que naquele lugar se havia de construir outro palácio.Em nome de quê esta estapafúrdia afirmação? Ao que se chegou!É com a maior displicência e, até, leviandade que se atenta contra um património qualificado há mais de 40 anos como edifício de interesse público.Duas companhias petrolíferas - a Chevron e a ELF - procuraram ambas nos anos 80, em momentos diferentes, sensibilizar o Governo de Angola a permitir que fossem elas a financiar o restauro do palácio. Os custos seriam avultados, três milhões de dólares, segundo contas da Chevron. A ELF, por exemplo, propunha, como contrapartida, poder fruir das instalações por dez anos para funcionamento da sua estrutura administrativa, após o que devolveria o edifício e ajudaria na criação de um museu de arte. Luanda simplesmente recusou e em círculos próximos do então secretário de Estado da Cultura, Boaventura Cardoso, era comum ouvir-se o comentário de que a proposta dos franceses não passava de uma ingerência nos assuntos internos de Angola.Mais tarde a UNESCO interessou-se igualmente pelo projecto de recuperação. Mandou a Luanda um perito, que efectuou estudos e levantamentos, até da própria história do palácio. Estas diligências, entretanto, fracassaram. Dir-se-ia que se preparava já, a prazo, a morte do edifício.Depois desta barbárie, só resta dizer que esse ministério, que dá pelo nome de Ministério da Cultura, não passa objectivamente de um "ministério da destruição ou da incultura".Que esperar, enfim, de um governo destes?Ao Presidente da República, enquanto chefe do executivo, compete tomar medidas drásticas para se apurarem os responsáveis por tamanho crime. O país sente-se cansado de tanta impunidade.*historiador angolano

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