Cibernéticos e apocalípticos

Uma estranha conjuntura tem pairado em Lisboa: é hoje que encerram o Cyber 99 no Centro Cultural de Belém e o Festival Atântico organizado pela Galeria Zé dos Bois em diversos locais do Bairro Alto e do Chiado, tendo como tema a Sensibilidade Apocalíptica. Há evidentes diferenças de propósitos mas a coincidência sugere um requestionamento das relações das imagens e da arte com o real e as tecnologias.Com a generalização da Internet e das tecnologias digitais originou-se uma nova utopia de acesso à informação e à criação artística. Baseada numa revolução técnica, esta utopia ou "promessa" criou uma difusa ideologia de algo de radicalmente novo na relação Homem-Máquina .Mas será assim tão novo? "Penso, logo existo" - quem não conhece a formulação base do racionalismo ocidental? Para Descartes, o Homem definia-se indissociavelmente pelas propriedades da Razão e da Alma, que o distinguia do animal-máquina. Ora, prosseguindo Descartes, o médico e filósofo La Mettrie expôs em "L'Homme Machine" (1740) a teoria de que a alma não é um princípio separado do corpo mas a rodagem de uma máquina única. Afinal, as teorias em voga da "máquina universo" ou do "cérebro planetário", possibilitados pela cibernética, não são assim tão novas! O que as distingue é a generalização dos novos suportes e os modos cognitivos - qualquer pai ou professor tem a experiência da ruptura epistemológica, das barreiras entre o seu pensamento e o dos jovens, frequentemente ignorantes das disciplinas clássicas (a matemática, então!) mas perfeitos navegadores da Net.O suporte tecnológico criou uma ideologia ou mesmo uma teleolologia ("doutrina das causas finais ou doutrina que sustenta a existência de uma causa primordial e pré-estabelecida de todos os fenómenos para um fim definido", segundo o Dicionário de Moraes). Se a condição pós-moderna se define pelo ocaso das grandes narrativas da História como processo tendente a um Fim último (que seria, por exemplo, o caso do comunismo, cuja ruína é o mais flagrante exemplo desse ocaso), ela é também acompanhada pela ideia de um novo começo, afinal herdeiro das teorias das "vanguardas" estéticas e políticas.A nova "promessa" é patente numa instalação exposta na Cyber 99, "Room of Desires" de Pavel Smetana, cujas formas são consequência dos movimentos do visitante, num exemplar processo da interactividade concebida como espaço em que todos seriam operadores ou produtores. Alguns jogos induzem também a expectativa de um número ilimitado de combinatórias, mas todos os que os praticam sabem que a sua condição de "produtores" de "realidades virtuais" é limitada - e quanto vezes os jogadores não gritam alguma obscenidade perante o insucesso dos seus esforços! O que na generalidade dos casos a Cyber propõe são protótipos de grande pobreza estética, que há que olhar não com uma desconfiança de princípio sobre o domínio do Homem pela Máquina, mas com uma reserva pela "promessa" que lhes está subjacente. E se não há que ter reservas aprioríticas sobre a Máquina, também não há que tê-las perante a Imagem, encarada em tantas culturas e momentos como ladra da Alma ou reino dos espectros e das sombras. O magnífico "Ghostacatching" de Paul Kaiser e Shelley Eshkar, a partir dos movimentos do bailarino Billy T. Jones, é uma amostragem de como a dissecação dos movimentos do corpo humano cria uma obra de arte virtual, no caso uma coreografia.Dir-se-ia que se a Cyber é a afirmação de Utopia, o Festival Atlântico é antes o reverso, uma Distopia - o que em tal conjuntura é por si só necessário e estimulante. "Dizem que isto é Arte - isto é um pedadelo!" - o comentário, ouvido à saída de "Afasia", uma "performance" de Marcel.lì Antúnez, espelha as "digestivas" concepções de Arte que o Atlântico vem incomodar. Sucede mesmo que instalações até tecnologicamente simples, como "The Words: The Press Conference Room" de Antoni Muntadas ou "Timor Loro S'ae - Enterrados Vivos" de Paulo Mendes, questionem a nossa relação com o real e as imagens com uma radicalidade política que importa sublinhar.Só que o "Apocalipse" e o "Fim" são ideologias de percepção do mundo tão em voga e simplistas quanto a Utopia cibernética. E se por exemplo "You will remember when we need to know" de David Hoffos é a fascinante recriação de um universo pós-apocaplítico que o cinema ou a televisão nos tornaram familiares, justamente para questionar o nosso fascínio, "Miko no Onori" da famosa Mariko Mori não é mais que a representação de uma Barbie em vestes futuristas e "New Age", exemplo das gangas estéticas e ideológicas de um Fim que, também ele, está na moda.

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